Urnas funerárias
VLADIMIR PUTIN vence as eleições russas com 88% dos votos. Sentimentos contraditórios. Por um lado, Putin ainda está com um pé no território dos spin dictators. Por outro, já descolou para o mundo pesado das votações norte-coreanas.
Ser um spin dictator é ser um ditador dos nossos dias, como explicam Sergei Guriev e Daniel Treisman em livro já editado em Portugal ( A Ditadura Adaptada ao Século XXI). Longe vão os tempos em que os ditadores eram carniceiros assumidos, com fuzilamentos em massa e propaganda tosca e repetitiva sobre os méritos sobre-humanos do líder.
Hoje, ditador que se preze gosta de se apresentar como um democrata. Matar opositores? Melhor arruiná-los com processos judiciais labirínticos. Calar a imprensa? Melhor tolerar um ou dois jornais da “oposição”, só para mostrar a “liberdade” que reina no país. Vencer com 99% dos votos? O ideal é deixar as coisas entre os 60% e os 75%, para ser mais credível.
A este propósito, Guriev e Treisman relembram o momento hilariante em que Alexander Lukashenko, o compincha bielorrusso de Putin, foi informado da sua retumbante vitória em 2006 com 93% dos votos. Embaraçado, Lukashenko ordenou que a cifra descesse para a casa dos 80%. É mais “europeu”, terá dito. E repetido: nas eleições seguintes, a cifra tem ficado por aí.
Vladimir Putin também começou bem: teve 53% dos votos em 2000. Quatro anos depois, saltou para os 71% (o mesmo valor de Dmitri Medvedev, seu substituto, em 2008). Em 2012, quando regressou, teve 64%; e, em 2018, 76%. Tudo muito respeitável, em suma.
Estes 88%, somados à guerra, à morte de opositores e ao garrote sobre a comunicação social, mostram um despudor que só confirma a passagem da ditadura de spin para a mais convencional tirania.
NO MOMENTO em que escrevo, está tudo em aberto. Falo dos votos da emigração, que ainda podem dar uma vitória ao PS. E, caso isso aconteça, o PS deve governar, afirmou Alexandra Leitão, mesmo que não exista à esquerda uma maioria parlamentar como em 2015.
Em teoria, é difícil discordar. Mas, na prática, imagino a aflição que Alexandra Leitão deve sentir quando pensa nas consequências infaustas dessa vitória. Se o PS vencer as eleições, Luís Montenegro perde-as; se Montenegro as perder, ele afasta-se; com a demissão de Montenegro, o PSD arranjará alguém para quem o “não é não” se converte de imediato no “sim é sim”; e, com isso, o governo PS terá vida curta porque a seguir virá um governo, ou um entendimento qualquer, entre o PSD e o Chega.
Inconscientemente, talvez seja isso que uma parte do PS deseja – atirar com o PSD para os braços do Chega, desmentindo assim a sua tão propagada angústia com a extrema-direita. Mas não acredito que Alexandra Leitão pertença a esse clube: entre perder de forma honrada ou correr o risco de entregar o País à direita radical, o seu coração nem balança.
NÃO SÃO APENAS as forças vivas do PS que gostariam de um enlace entre Luís Montenegro e André Ventura. Sete “notáveis” do PSD – hoje, para se ser notável, basta ter personalidade jurídica – também clamam por um entendimento. Um deles é Rui Gomes da Silva, habituado a estas lides: depois de ter sido padrinho de casamento de André Ventura, o dr. Gomes da Silva ganhou um certo gosto por estas solenidades.
O PSD, naturalmente, fará o que entender. Mas estranho que os “notáveis” não antecipem os efeitos de levarem os nubentes ao altar. O primeiro, mais ou menos óbvio, seria transformar a autoridade política de Luís Montenegro – a sua autoridade de facto, não de jure, para citar os clássicos – num verbo de encher. O segundo, menos óbvio, seria convidar os portugueses – os 2 milhões que votaram na AD e na IL, não o milhão que votou no Chega – a acertar contas nas próximas europeias com um partido que mente aos eleitores.
Criticar o “não é não” de Montenegro é legítimo e, para muitos, inevitável. Mas fazer de conta que não existiu é um convite ao suicídio.
W