A perspetiva de Putin sobre a guerra Rússia-Ucrânia
O PRESIDENTE RUSSO Vladimir Putin fez algo sem precedentes há duas semanas: deu uma conferência de imprensa de duas horas dirigida ao público americano. Não foi exatamente uma conferência de imprensa, no sentido em que Tucker Carlson, um apresentador de talk show visto como simpático à Rússia, era o único repórter presente. Mas também não foi, estritamente falando, uma entrevista, uma vez que, durante a maior parte do programa, Putin falou sem perguntas. De certa forma, isso tornou o programa mais valioso, porque permitiu a Putin expor os seus pontos de vista de uma forma interessante e importante, que talvez não tivesse sido possível se Carlson tivesse feito perguntas centradas numa perspetiva americana.
Em vez disso, ficámos com uma perspetiva russa genuína sobre a guerra na Ucrânia e Putin pareceu ser um homem razoável e ponderado. Ele fez algumas afirmações muito duvidosas, mas todos os líderes fazem afirmações duvidosas enquanto parecem estadistas, e o comportamento de Putin mostrou ao público americano que a sua posição não é desprovida de algum mérito. Também deixou claro que é um patriota russo que trabalha para os interesses russos e é neste espírito que devemos encarar as suas afirmações. Ele não queria parecer Estaline. Também pareceu ter enormes conhecimentos, muito para além da maioria dos políticos, embora tivesse a vantagem de saber o que ia ser dito e de ter um tradutor que se interpunha sempre entre ele e o seu público. Mas creio que o que vimos foi Putin, ajudado por perguntas previamente preparadas, a dar uma ideia do seu vasto conhecimento. Se isto funcionou, ele mostrou que a Rússia é governada por um pensador sofisticado. Contudo, dada a extensão e a complexidade da entrevista, o público americano pode ter desistido e não ter ouvido a entrevista completa.
No entanto, o contexto histórico, o facto de visar uma audiência americana e a descrição extraordinariamente pormenorizada da Rússia e da história russa parecem estar a preparar o terreno para negociações. Em defesa do ataque da Rússia, Putin acusou os EUA e a NATO de desonestidade e duplicidade ao enfrentarem a Rússia, que estava simplesmente a cumprir o seu imperativo histórico. Não se tratou de um programa vulgar, nem de uma divagação autoindulgente; a ênfase de Putin no fracasso das negociações na Turquia no início da guerra torna-o claro.
O foco central de Putin incidiu sobre a história da Rússia. Ele explicou como a Rússia se formou há muitos séculos e comparou-a com a formação da Europa de Leste. Desta forma, ele argumentou que a Ucrânia sempre fez parte da Rússia, física e linguisticamente. Não declarada, mas implícita no seu argumento, está a afirmação de que a Ucrânia é a Rússia, e a invasão da Ucrânia representa simplesmente o regresso russo a uma realidade mais antiga. É por isso que, segundo Putin, as ações da Rússia na Ucrânia constituem uma operação militar especial e não um ato de guerra. Putin falou também da Polónia, dando a entender que a Polónia e a Lituânia são países renegados cujas raízes são inseparáveis da Rússia. A discussão sobre a história russa foi longa, mas não foi meramente académica. O argumento de Putin era que a história liga um lugar ao que o rodeia e aos seus habitantes e, neste caso, dá à Rússia o direito de reivindicar território estrangeiro. Admirei a
forma como ele introduziu as suas reivindicações sobre a região de uma forma que poderia ter sido rejeitada ou mesmo ignorada. No entanto, ele lançou as bases para as reivindicações russas na Polónia.
Algumas das afirmações de Putin foram confusas. Por exemplo, afirmou que o atual governo ucraniano e os seus antecessores eram nazis e, por conseguinte, inimigos da Rússia. Citou dois homens que se tornaram colaboradores nazis antes de concluir que isso fazia da Ucrânia um remanescente da Alemanha nazi e, por isso, um Estado hostil à Rússia e a outros países que tinham combatido Hitler. Isto deixou-me confuso, porque não há nenhum país que tenha sido ocupado pelos alemães que não tenha tido colaboradores, da França aos Países Baixos, etc. Alguns podem ter sido ideologicamente nazis, mas todos procuravam sobreviver ou prosperar. Putin apresentou este argumento desde o início, mas, se fosse seguido logicamente, isso levaria a Rússia a invadir a maior parte da Europa como uma obrigação moral. Putin demonstrou ser altamente sofisticado, pelo que deve compreender o que está a dizer e depende do facto de o mundo não compreender as suas afirmações ou não as levar a sério.
Noutra parte, enquanto manifestava a sua disponibilidade para negociar, Putin disse que os Estados Unidos se estavam a prejudicar a si próprios ao utilizarem o dólar para obrigar potências estrangeiras a alinharem com a sua visão do mundo. Em seguida, afirmou, nas suas observações mais desconcertantes, que a economia da China é muito maior do que a dos Estados Unidos e que o seu futuro económico é brilhante. É como se ele não tivesse percebido a realidade da China nos dois anos que se seguiram ao ataque à Ucrânia. Ele disse isto no contexto da afirmação de que está a emergir uma nova ordem económica e que, para que tal aconteça, a China tem de a impulsionar. É interessante que a análise seriamente profunda que Putin fez das coisas, mesmo que algumas partes sejam discutíveis, tenha sido concluída com afirmações obviamente erradas, mas ele esteve a fazer isso durante muito tempo e provavelmente estava cansado.
Outra coisa que me chamou a atenção foram as suas observações sobre os mísseis hipersónicos intercontinentais da Rússia. A velocidade e a capacidade de manobra dos mísseis hipersónicos tornam a defesa contra um ataque – nos EUA ou noutro lugar – muito difícil. Defendi o desenvolvimento de mísseis hipersónicos intercontinentais no meu livro The Future of War. Os EUA ainda não colocaram em campo um míssil hipersónico, nem tenho qualquer prova de que estejam a desenvolver uma versão intercontinental. Se o míssil hipersónico intercontinental da Rússia for tão capaz como Putin sugeriu, então essa pode ter sido a coisa mais significativa que ele disse.
O resto dos comentários de Putin consistiram em queixas sobre a NATO e os Estados Unidos e na sua insistência de que a revolta em Kiev, em 2014, foi o verdadeiro início da guerra. Deixou por explicar como é que a Rússia pôde ignorar uma ameaça tão terrível durante tanto tempo.
Putin é o Presidente de um Estado-nação moderno, pelo que tem de explicar as suas políticas ao seu povo e tentar influenciar outros governos e públicos estrangeiros. O objetivo não é ser verdadeiro, mas sim persuasivo, a fim de colocar outros governos sob uma pressão cuidadosamente moldada. O que se pode dizer é que a Rússia entrou plenamente na modernidade com uma excelente apresentação da verdade e dos mitos, permitindo a Carlson algumas refutações. Putin viu-o como amigável, mas como uma carta selvagem, pelo que poucas cartas lhe foram dadas. ●