Faca e alguidar
DEPOIS DE VER
os primeiros “debates” televisivos com som, segui o conselho de amigos e passei a vê-los sem som. A experiência melhorou significativamente. Sim, não ouço as propostas que cada candidato apresenta. Mas, por outro lado, sou poupado às mentiras recorrentes que são ditas em horário nobre, sem falar das promessas lunáticas que só apanho mais tarde, quando as leio no jornal. Uma delas, que devia desqualificar qualquer candidato, é pôr os contribuintes a pagar os empréstimos à habitação de quem não honra os seus compromissos.
Em periodo eleitoral, diz-se muita coisa, eu sei. Mas mesmo pelos padrões febris da época, esta curiosa consonância entre o Chega e o PS foi um dos momentos mais pornográficos da campanha, capaz de rivalizar com as célebres filmagens nas carruagens do Intercidades.
De resto, e só pela imagem, as minhas apreciações resumem-se ao essencial: o cabelo de Luís Montenegro é suspeito; Rui Rocha tem de optar (barba a sério ou cara limpa); as gravatas de André Ventura são um atentado visual sem perdão; Pedro Nuno Santos acerta nas gravatas, mas falha na tosquia nasal; Mariana Mortágua deve disfarçar melhor a náusea que sente quando debate com alguém de direita; Rui Tavares parece que vive permanentemente assustado; Inês Sousa Real está sempre a um passo do fanico; e Paulo Raimundo devia fazer um esforço para não ser tão Paulo Raimundo.
MANUEL ALEGRE
não esconde a sua amargura: por um lado, há uma extrema-direita que cresce nas sondagens; por outro, a juventude está a votar à direita. Foi para isto que se fez o 25 de Abril?
Curiosamente, foi: o derrube da ditadura e a posterior consolidação democrática fez-se para que o pluralismo político fosse uma realidade. E, com esse pluralismo, vêm as coisas desagradáveis (como a extrema-direita) e as coisas naturais ( como a preferência dos jovens pela direita).
Hoje, o partido de Alegre faz sucesso entre as franjas mais envelhecidas, mais pobres e com menor instrução. Mas isso não mostra o fracasso do regime, excepto para quem tem da democracia uma concepção jacobina. Quando muito, mostra apenas o fracasso do PS em convencer a parte mais dinâmica e educada do país para que apoie um partido que governou grande parte dos últimos 50 anos. Por que será?
Antes de propor uma “pedagogia democrática” que significa apenas uma pedagogia sectária, talvez não fosse inútil que Manuel Alegre, em acto de humildade, se dedicasse a um exame de consciência mais caseiro. E, já agora, que evitasse os maus exemplos: misturar o fracasso do partido com o fracasso do regime só aproxima Alegre do mesmo tipo de pensamento decadentista em que a extrema-direita é pródiga.
E POR FALAR NAS DELINQUÊNCIAS
da direita: o nosso Donald está imparável! Em campanha eleitoral para as eleições de Novembro, o homem resolveu aplicar aos seus aliados da NATO a velha ameaça da máfia: ou pagam o que devem, ou o tio Vladimir vai partir-vos as rótulas. Palavras para consumo interno?
Seguramente. Mas, atendendo ao personagem, nunca fiando, mesmo que muitos membros da Aliança se continuem a fiar. Falo sobretudo da França e da Alemanha, as duas potências da Europa continental que persistem em arrastar os pés no cumprimento dos 2% do PIB para a Defesa. Em que mundo é que esta gente julga que vive?
E, já agora, em que mundo é que Portugal julga que vive também? Nos inomináveis debates, há tempo para tudo. Até para acusações pindéricas de misoginia e mentiras pegadas sobre avós com ordens de despejo. Faca e alguidar, em suma.
O que não se vê é uma discussão sincera sobre o futuro hostil que nos aguarda. Para ficarmos nos dois principais partidos com reais hipóteses de vencerem as eleições, eles bem prometem os 2% para a Defesa nos respectivos programas. Mas a coisa é mero decalque de programas anteriores, rapidamente enxotada para o fundo das prioridades quando o circo eleitoral termina.
Manifestamente, não temos grande amor pelos ossos. ●