As conspirações dão jeito para esconder o óbvio
As manifestações dos polícias estão a ser infiltradas pela extrema-direita, dizem-nos. As ações de cortes de estradas pelos agricultores estão a ser controladas pela extrema-direita, dizem-nos também. Se calhar, os técnicos das associações e de cooperativas também terão uma mão oculta poderosa e manipulativa por trás. A revolta dos professores foi, claro, instrumentalizada por um sindicato pária que nada respeitava, as greves dos médicos tiveram intuitos políticos para atingir um governo que tudo fez pelo setor da Saúde em Portugal, os protestos de camionistas e bombeiros têm sempre fins pouco claros.
Se os justificativos não forem deste género é algo parecido. Quando há greves, manifestações e revoltas por melhores condições de trabalho ou de vida lá vem a ladainha habitual da manipulação conspirativa. A extrema-esquerda política e do comentário – que nunca gostou de polícias e afins – cola sempre estes protestos a infiltrações perigosas do papão da extrema-direita. O partido no poder, aquele que acha que tudo fez para melhorar a vida de todos e que não compreende que haja gente que não vê isso no recibo do ordenado ou na vida do dia a dia, encarrega-se logo de espalhar que os protestos e manifestações só são toleráveis se tudo for feito com juizinho para não chatear muito.
No Portugal dos tempos que já lá vão, os protestos sociais e laborais estavam inevitavelmente associados aos sindicatos do PCP, que eram vistos como uma espécie de regulador social autorizado até pela elite do comentário nos media. Pronto, paravam amiúde os transportes e o funcionalismo público e isso era encarado como normal e até saudável. Mas fora desta redoma, protestar, manifestar-se, fazer greve, impedir a normalidade do dia a dia é simplesmente algo que está sob o poder de forças ocultas que só querem destabilizar, provocar, atingir os fundamentos democráticos (seja impedir jogos da bola ou adiar eleições) e, sempre, com o intuito de levar o Chega ao poder.
E se realmente pensássemos um pouco sobre tudo isto?! Estamos em tempo de eleições e é evidente que os protestos tentam marcar posições para o futuro, obter compromissos de quem vem a seguir, sejam ou não os mesmos. Mas em tudo isto há uma evidência: o descontentamento social é grande em vários setores porque há problemas que estão à vista de toda a gente: da educação à saúde, do Estado social à remuneração do trabalho, da habitação à juventude, e muito, muito mais.
E não há conspiração, força oculta, extrema-direita ou esquerda, ou o Diabo a quatro, que consiga que agricultores cortem estradas se estes não estiverem há muito com as expectativas defraudadas e viverem cada vez com mais dificuldades. Nenhum polícia acampa junto ao Parlamento se não chegar a um limite do que é tolerável e se não sentir que o Governo cometeu uma injustiça flagrante no que fez em relação a outra força policial e aos agentes dos serviços secretos. Nenhum professor ou médico faz o que já fez se não estiver a sentir na pele algo que não pode mais deixar passar. É isso que está em causa e era bom que não houvesse cortinas de fumo para sacudir culpas de quem governa o País.
E
E por falar em conspirações…
Confesso que as não consigo ver nas polícias, no Ministério Público e na magistratura judicial e contra o poder político. Às vezes, vejo alguma má gestão dos processos, preguiça e incompetência, mas isso é natural em todas as áreas e profissões, da política ao jornalismo. O que não vejo é o objetivo de tirar alguém do poder, colocar lá outro, destruir A e privilegiar B. Ou achincalhar quem é suspeito, arguido ou acusado em casos de corrupção e afins. Vejo, isso sim, um sistema judicial (e político), que permite a dualidade do poder absoluto do recurso para não se prestar contas e arguidos detidos durante semanas a discutirem medidas de coação. E, já agora, políticos que gozam uma tolerância, até social, que não tem paralelo com qualquer alto quadro a trabalhar no privado. Que empresa deste País permitiria que um seu dirigente continuasse em gestão quando está já constituído arguido por mais de meia dúzia de crimes relacionados com delitos económico-financeiros? Na política, e na Madeira em particular, é possível.
E
Isto é democracia
Os quase 30 debates televisivos e as dezenas de entrevistas em jornais, sites e rádios a quem representa os partidos políticos são a expressão maior da democracia e não uma anacrónica overdose como alguns doutos analistas chegaram a aventar. Responder, discutir, apresentar soluções, sujeitar-se ao escrutínio de quem tem de escolher quem nos vai governar é algo que deve ser sempre estimulado. Os políticos e os media estão a dar um bom exemplo. ●