“A gente vai perdendo tudo”
“DESAGREGAÇÃO” é a palavra que sintetiza 2023. Vencê-la em 2024 vai exigir mais coragem e energia do que, coletivamente, temos demonstrado.
Uma velhota pergunta à vizinha, na praça da aldeia, se viu o último episódio da novela, na noite anterior. “Já não acompanho novelas”, responde a vizinha, pesarosa. “A gente vai perdendo tudo”.
Esta conversa, que não presenciei e me foi contada por um amigo, é daquelas que é tão boa que ficamos felizes por não poder confirmar, com medo de que não seja verdade. Esta sensação de que vamos “perdendo tudo”, partilhada por tantos, quer sigamos ou não “as novelas”, é uma boa síntese do ano que acabou – em Portugal e no mundo. Exprime aquilo a que os alemães chamam o “Zeitgeist”, o espírito do tempo.
“Desagregação” é a palavra que sintetiza o espírito do tempo. Em Portugal, desagregação dos serviços públicos, espelhada em períodos de espera comatosos nas Urgências do SNS e de resultados em queda acentuada na Educação, quer nas provas internacionais do PISA, quer nos próprios exames de aferição nacionais. Desagregação política, exposta na derrocada de uma maioria absoluta em torno de um caso de corrupção e na credibilidade política do próprio Presidente da República, envolvido num caso familiar de cunhas. Desagregação da própria arquitetura institucional do Estado quando, para proteger a pele, políticos começam a salivar por uma tutela partidária sobre o poder judicial.
Para lá das nossas portas, vamos perdendo tudo na guerra lançada por Israel ao Hamas mas que, muito para lá do grupo terrorista, degenerou numa ação de limpeza étnica da Faixa de Gaza, na ilusão de que isso tornará mais segura a democracia israelita – quando, na verdade, está a dar cabo do que resta dessa democracia e da própria legitimidade do Estado de Israel. Prossegue a guerra da Rússia contra a Ucrânia, explorando a timidez da Europa e dos EUA, quer no apoio militar à Ucrânia, quer na aplicação a sério de sanções à Rússia e na entrega desses ativos ao país invadido, para pagar o seu esforço de defesa e a sua reconstrução.
2023 podia ter sido só um ano mau, mas é mais do que isso. É a continuação de um caminho de perda progressiva da qualidade das instituições democráticas e dos valores que as suportam – e que elas deviam afirmar. Em Portugal e no mundo, vivemos a desagregação resignada como “espírito do tempo”. Só que esse “espírito” não se formou por desígnio divino, mas pela vontade de pessoas concretas – pessoas, organismos e Estados. É hoje claro o papel da Rússia e do Irão como forças desestabilizadoras das democracias, com a China a aplaudir e a ajudar.
É difícil saber se o alinhamento russo de partidos como o PCP e a família política europeia do Chega resulta só de uma afinidade ideológica ou de um patrocínio financeiro, mas não é difícil, nos tempos que correm, esperar o pior. Há anos que a Rússia interfere em eleições e referendos no Ocidente, com campanhas de desinformação e candidatos de bolso, como Trump. O que importa é que isso não é irreversível, mas exige mais coragem e frontalidade do que temos tido – não só as lideranças políticas, mas os cidadãos.
Vamos comemorar os 50 anos do 25 de Abril da melhor maneira: num ano com três eleições, açorianas, legislativas e europeias. Que elas sirvam para discutirmos o que Portugal deve à Europa, e aos portugueses, nesse combate global pela liberdade e pela democracia. Bom ano (se fizermos por ele)! ●