O Jogo

“Pelo meu filho não podia desistir”

Um relato emocionant­e sobre a morte súbita de Gustavo. Questionou o sentido da vida e seguiu em frente para o homenagear

- PEDRO CADIMA

Foi depois de uma vitória no reduto do Estoril que Rui Duarte colidiu com a pior das notícias, mais terrível e angustiant­e. Passou pela dor mais aguda mas mentalizou-se que tinha de seguir em frente.

Num choque generaliza­do, já que não é, em circunstân­cia alguma, normal um pai perder um filho com 23 anos, Rui Duarte teve de lidar com um drama pessoal e familiar, a nada comparável. Com pouco tempo no comando da equipa, a prazo, sem vínculo para a próxima temporada, decidiu não desistir, numa prova de coragem e caráter. A solidaried­ade foi muita mas as lutas interiores foram de dimensão impensável. Rui Duarte foi confrontad­o com o dia fatídico e com um só caminho pela frente: homenagear todos os dias Gustavo, falecido por morte súbita num quadro de doença crónica de coração, a 14 de abril.

Como gere a ambição de carreira, nesta fase, entroncand­o no drama pessoal que viveu? Saber se treinar, estar ativo, será sempre o melhor remédio, escape e homenagem?

—O meu filho era um miúdo que gostava muito de futebol, vivia isto, via os jogos todos de Portugal, da Champions, era igual se fossem Liga ou Liga 3. Ele respirava futebol, até pela infelicida­de que teve desde a nascença dos problemas de coração que foram detetados. Ele acaba por se ver impossibil­itado de fazer uma das coisas pela qual mais paixão teve, a que, naturalmen­te, se dedicaria. Era uma paixão tremenda que tinha pelo futebol, pelo pai ex-jogador, pelo pai treinador, pelo irmão jogador. Ele vivia as nossas vidas! Por isso não posso desistir, mesmo que a vida nos pregue cada crueldade, que nos faz questionar o próprio sentido da vida. Custa a acreditar, a minha força de continuar vem dele e tenho esta vontade de homenageá-lo todos os dias. Devo retribuir com tudo o que o iria deixar contente. No dérbi com o Vitória ele teria ficado eufórico, contra o Casa Pia depois da nossa vitória com menos um, ter-me-ia dado um abraço que me ia esmagar. Ele vibrava com a minha profissão, com tudo o que vivia e defendia. A minha força vem dele desde cedo, mudei muito como pessoa pela força que ele tinha, sempre alegre e contagiant­e. Contagiava-nos todos, apesar de todas as dificuldad­es que tinha, fazia-nos acreditar que havia esperança. A minha coragem ou forma de estar na vida vem dele. Não posso parar, tenho de chegar a um nível alto o suficiente para o poder homenagear e retribuir tudo o que foi para mim em 23 anos.

De onde vieram essas forças naquele momento em que o mundo desabafou da forma mais cruel?

—Foi tudo muito duro após a vitória no Estoril. Foi chegar a casa e estar tudo bem e na manhã seguinte acontecer o que aconteceu. Não pensei em mais nada, a não ser na família. Foi duríssimo, não é explicável, é algo que daqui para a frente será sempre difícil de atenuar. Vai estar sempre aqui uma saudade enorme do meu filho. A presença dele faz-me muita falta. Naquelas primeiras horas passei ao lado do que era a minha carreira, as minhas funções. Mas pouco depois percebi que não podia parar, era a forma de me sentir vivo, era uma responsabi­lidade minha até para manter a alegria de viver, também da minha esposa e do meu filho Afonso. O sentimento de perda não se apaga mas temos de fazer com que a vida faça sentido, pelo menos, para nós os três. Nunca poderia desistir pelo que representa­va o nosso filho. Seria um ato de cobardia agarrar nas minhas coisas, ir para a minha terra e chorar.

Após a profunda dor inicial, senti que me tinha de agarrar a isto, de vencer por ele. Tenho de ter a mesma coragem. Se fosse para casa ele não iria sentir orgulho no pai, agarrei-me aos valores dele.

Sabemos também que o apoio dos atletas foi fortíssimo?

—Todos os jogadores foram incríveis, todo o staff, administra­ção, presidente, de toda a gente na formação recebi mensagens de apoio e conforto. Foram as homenagens públicas nas redes sociais, no estádio, dos adeptos. É muito difícil retribuir esse apoio, daí a minha lealdade e compromiss­o com o clube. O carinho não apaga a dor, mas é algo que nunca irei esquecer, das homenagens públicas às privadas. Até do mundo do futebol, de tantos presidente­s, de tantos jogadores e treinadore­s. Deram-me todos força para continuar. Inevitavel­mente, este mês e meio é uma história de superação. Esta provação o

“Marcame muito pela formação, anos de adolescent­e e de um jogador jovem que chega à equipa principal a projetar a sua carreira de sonho”

“Faço os meus melhores anos na Liga, marca-me imenso, até por se tratar de passagem muito prolongada”

“Dou os primeiros passos como treinador, recebo uma grande oportunida­de de quem acredita em mim. Para ter o trajeto que tenho hoje, não posso esquecer o Farense”

“Realmente incrível, senti-me apaixonado por tudo o que vivi no clube e na cidade. Vão marcar-me para sempre. Foi um sentimento que cresceu em pouco tempo. Saio daqui bracarense”

“Seria um ato de cobardia pegar nas minhas coisas, ir para a minha terra e chorar. Após a dor senti que tinha de me agarrar a isto”

que lhe diz em concreto? —A superação já vem de trás, o meu filho transformo­u-me como pessoa, fez-me diferente. A superação dá-nos mais força, mas não foi fácil preparar jogos com uma dor tão grande que carregava. Tentar fazer com que os jogadores não a percebesse­m, ter de arranjar motivação e força para os outros, sendo eu o principal motivador com a responsabi­lidade de fazer toda a gente acreditar. Sendo eu quem mais sofria não era fácil, como não era fácil arranjar forças quando via a equipa perder e conseguir encontrar um discurso incisivo, minucioso e tentar fazer as mexidas certas. Tinha de encontrar o discurso correto, abordagem correta para os fazer acreditar e os motivar a mudar um jogo, no meio de um grande sofrimento. Foi uma experiênci­a de superação difícil de explicar, acho que só com muita coragem se consegue ultrapassa­r e motivar quem depende de nós numa situação destas.

“Era um miúdo que gostava muito de futebol, vivia isto, via todos os jogos de Portugal e da Champions. Era igual que fossem da Liga ou da Liga 3”

“A minha força vem dele desde muito cedo”

“O carinho que recebi não apaga a dor, mas é algo que nunca irei esquecer. Tive muita força para continuar”

“Foi uma experiênci­a de superação difícil de explicar, só com muita coragem se consegue ultrapassa­r”

“O meu filho transformo­u-me como pessoa”

 ?? ??
 ?? ??
 ?? ??
 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal