Lugar ou tempo de sonho
OParaíso seria certamente onde estivesse a minha biblioteca pessoal, composta pelos livros por que me apaixonei, e onde houvesse uma livraria à qual chegassem novidades todos os dias. Teria de haver um lago, pássaros e árvores coloridas, frutas doces, nenhuma ácida, sem cebolas e sem salsa, jamais pimentos. E todos os pequenos almoços seriam preparados pelo Hotel Convento da Sertã, e os cães seriam também eternos e infantis, com pessoas a tocarem música pelas sombras, composições novas de Bach e Vivaldi, e o Monteverdi estaria a rir de tanta beleza e melancolia. O Paraíso seria termos sempre memória, para que nada se perdesse. Tudo deveria ser rigorosamente lembrado para que, através de o lembrarmos, ser eterno. Porque ninguém perdura se sua memória acabou. Só me mantenho vivo enquanto lembro. O que esqueço mata-me. Perde-se e perde-me.
Passam 25 anos desde a abertura da Livraria Centésima Página, mais 25 das Correntes d’Escritas, 24 desde a morte do meu pai, cem desde o nascimento do Lêdo Ivo, 20 desde a publicação do meu primeiro romance, e é o ano zero de novas mortes, essas que ainda me estão a cobrar altos preços, os mais caros no momento. Tudo celebra aniversário porque tudo nos escapa, se põe à distância, acaba, mesmo aquilo que ainda só começou. Talvez por isso, ando a sonhar mais, as noites cada vez mais mal dormidas, cheias de despertares súbitos, espantados, à procura do que não há, do que não é. Sonho e pareço reclamar de não poder mudar-me definitivamente para o sonho, com meus livros, a ouvir Bach e Vivaldi pelas sombras. Sentado com Monteverdi a ver meus mortos a passar.
Estive a ler Calvino, os nossos antepassados, e estou com a cabeça repleta de estranhezas, muitas pessoas cortadas ao meio ou a trepar pelas copas acima, muitas pessoas inexistentes, quase sempre eu. Quase sempre eu que já não existo e pergunto a quem vem ao pé porque razão me calharia a mim não existir. Chego a duvidar de algum dia ter tido rosto, encontrar uma resposta no espelho, ter ostentado meu pranto, minha alegria, meu olhar. E quem se apieda diz-me que posso demorar um tempo, como uma ideia que se vai aclarando, antes de nascer de verdade. Passaria a existir. Mais tarde. Como alguém natural do Paraíso, sem tempo prévio. O que talvez me impeça de ter biblioteca pessoal, livros pelos quais estou já apaixonado. A minha angústia começa aí. Se não existir, se for futuro, aclarando por sorte, não levo Kafka nem Proust, Tolstói nem Calvino. Tudo será por descobrir, como eu serei por descobrir, talvez perdido de ser exatamente eu. Talvez usando a preguiça da bondade eterna para não aprender nada. Nem
O Paraíso, cada vez mais, começa na biblioteca. Nos livros que amo e que, por generosidade, lembram tudo continuamente e esperam por mim. Até que eu seja apenas como eles. Mais ninguém
ler nem ouvir música. Nem descer os olhos em respeito por Blake quando ele vier numa aguarela fresca, translúcida, perfeita.
Este ano, não sei que me dá. Já era sem muito sentido, agora estou sem acreditar. Julgo que é isso. Estou sem acreditar. Um amigo diz que afinal o importante é esquecer. E eu entendo perfeitamente. Mas se esqueço tenho a impressão de ser como o cavaleiro de Calvino, atazanado com não estar aqui por inteiro, estar já póstumo, sem solução.
Na Sertã, a senhora Noémia ofereceu-me dois dos seus cadernos feitos à mão. Estou agarrado a eles como a um pouco de terra para não naufragar. Haverei de lhes desenhar e escrever algo e, como de costume, apontarei toda a esperança de que um texto, por fim, me dê rosto e corpo, me dê companhia e biblioteca, música, a cura para as dores de cabeça, para o reumatismo, para o fascismo, para os que amamos e nos desaparecem, nos abandonam. O Paraíso, cada vez mais, começa na biblioteca. Nos livros que amo e que, por generosidade, lembram tudo continuamente e esperam por mim. Até que eu seja apenas como eles. Mais ninguém.