Jornal de Letras

O ano de Kant

- Carlos Fiolhais

Em 2024 celebram-se na Alemanha e em todo o mundo os 300 anos de Immanuel Kant. De facto, Kant nasceu a 22 de abril de 1724 de uma modesta família de artesãos de couro na cidade então prussiana de Königsberg, hoje Kaliningra­do, um enclave da Rússia entre a Polónia e a Lituânia. Haveria de morrer na mesma cidade em 12 de fevereiro de 1804, há 220 anos, estando sepultado na sua catedral. O filósofo viveu, portanto, quase 80 anos, sem praticamen­te ter saído da área da sua cidade, sendo proverbial a sua rotina pontual de celibatári­o. No entanto, hoje é considerad­o um filósofo global, um dos maiores de sempre. O ano de 1781, quando fez 57 anos, foi o ano da “revolução kantiana”, isto é, da transição do seu período pré-crítico para o período crítico. A obra Crítica da Razão Pura, publicada em Riga, separa esses dois períodos.

A sua fase pré-crítica caracteriz­a-se pelo cultivo das ciências, então chamadas filosofia natural. O ano do terramoto de Lisboa, 1755, é um marco no seu trajeto académico, uma vez que obteve então o grau de doutor na Universida­de de Königsberg, com a tese De Ignes ( Sobre o fogo), em que discute o éter, o suposto meio que permite a transmissã­o de luz e calor no espaço. Esta não foi, porém, a sua primeira publicação. Tinha escrito, em 1746, Reflexões sobre a verdadeira estimativa das forças vivas; em 1754, Exame da questão de saber se a Terra, na sua revolução em torno do seu eixo, pela qual produz a alternânci­a do dia e da noite, sofreu alguma mudança desde os primeiros tempos da sua origem (sofreu!), e A questão de saber se a Terra está a envelhecer, considerad­a fisicament­e (está!); e, em 1755,

a História Natural Geral e Teoria dos Céus.

Este livro, publicado em Königsberg e Leipzig sem indicação de autor, é mais do que um tratado que compila a física newtoniana: avança hipóteses novas, que se revelariam fecundas: o sistema solar nasceu da condensaçã­o de uma nebulosa em rotação (mais de quatro décadas depois Laplace sustentari­a o mesmo, sendo a teoria chamada de Kant-Laplace); e as estrelas existem em grandes agregados, a que ele chamou “universos-ilha” e a que hoje chamamos galáxias (só nos anos de 1920 o astrofísic­o Hubble estabelece­ria as dimensões da nossa). O subtítulo deste livro é elucidativ­o: Ensaio sobre a constituiç­ão e a origem mecânica do Universo segundo as leis de Newton. Nos 200 anos da morte de Kant saiu uma tradução em português: Teoria do Céu (Ésquilo), com prefácio de Joaquim Fernandes.

SE DESCONTARM­OS UMA MEMÓRIA que era um requisito adicional para o doutoramen­to, os três trabalhos que Kant escreveu a seguir à tese doutoral foram sobre o terramoto de Lisboa: Acerca das causas dos tremores de terra, a propósito da calamidade que, perto do final do ano passado, atingiu a zona ocidental da Europa (1756), História e descrição natural dos estranhos fenómenos relacionad­os com o terramoto que, no final de 1755, abalou uma grande parte da terra (1756), e Consideraç­ões adicionais acerca dos tremores de terra que, há algum tempo a esta parte, se têm feito sentir (1756). Estes escritos estão reunidos no volume traduzido em português Escritos sobre o Terramoto de Lisboa (Edições 70, 2019, reeditado em 2023). O primeiro e o terceiros saíram num semanário de Konigsberg em janeiro e abril de 1756. O segundo, maior, foi publicado em março autonomame­nte.

[Em Bona] pode ver-se uma exposição articulada em torno das três questões que Kant enunciou na Crítica da Razão Pura: ‘Que podemos saber? Que devemos fazer? Que nos é lícito esperar?’. Elas condensam-se na grande questão, sempre em aberto: ‘Que é o homem?’

Não se sabe bem quando Kant tomou conhecimen­to do terramoto de Lisboa – talvez ainda em novembro pois a noticia correu célere –, mas o certo é que a descrição naturalist­a de Kant precedeu a discussão filosófica entre Voltaire ( Poema sobre o Desastre de Lisboa, em março de 1756; Edições 70, 2013) e Rousseau (carta de Agosto de 1956). A polémica é bem conhecida: Voltaire acusa Deus dos males do mundo, contrarian­do a visão de Leibniz de que vivemos no melhor dos mundos, e Rousseau vê em Voltaire um antropocen­trismo ingénuo, dizendo que a culpa não era de Deus, mas sim dos homens que deviam conformar a suas construçõe­s às forças da Natureza.

Como Leonel Ribeiro dos Santos salientou, Kant respondeu-lhes antecipada­mente, abonando as posições de Rousseau. Apesar de ser crente, não concebia Deus como a fonte dos males do mundo: “Vemos, todavia, que inúmeros malfeitore­s morrem tranquilos, que os terremotos desde sempre flagelaram determinad­as regiões, dizimando indiscrimi­nadamente velhos e novos, que a parte cristã do Peru não é menos sacrificad­a do que a pagã e que muitas cidades foram, desde o início, poupadas a esta devastação, sem que, por isso, possam reivindica­r qualquer estatuto de impunidade”. O nosso papel devia ser compreende­r a Natureza: “A Natureza só pouco a pouco se descobre. Não devemos tentar adivinhar, com impaciênci­a e mediante fantasias, o que ela nos esconde, mas antes devemos aguardar até que ela revele inequivoca­mente os seus segredos em claros efeitos”.

ADOPTANDO A FAMOSA FORMULAÇÃO kantiana publicada em 1784 num periódico berlinense em resposta à questão “O que é o Iluminismo?”, devíamos “ousar saber”. Kant não só ousou saber, como se tornou professor, dando saber aos outros. Após o doutoramen­to ensinou, entre outros temas, Geografia Física: depois dos sismos interessou-se pelos ventos.

Em 1770, publicou a sua dissertaçã­o inaugural para se tornar lente de Lógica e Metafisica na Universida­de de Königsberg ( Sobre a forma e os princípios dos mundos sensível e intelectua­l). Só após prolongada maturação silenciosa, abriu a fase crítica, na qual, abandonand­o a filosofia natural, se embrenhou na metafísica. Esse abandono não foi, porém, total, pois continuou a interessar-se por temas científico­s, como, na antropolog­ia física, as diferenças entre homens e animais e as diferenças entre as raças humanas. Mas ficou separada a ciência da filosofia.

Em setembro próximo, terá lugar um grande congresso internacio­nal sobre Kant em Bona (por razões obvias, não pode ser na cidade russa). Na antiga capital alemã, pode ver-se uma exposição articulada em torno das três questões que Kant enunciou na Crítica da Razão Pura: “Que podemos saber? Que devemos fazer? Que nos é lícito esperar?”. Elas condensam-se na grande questão, sempre em aberto: “Que é o homem?”

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Immanuel Kant
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