O centenário do suplemento literário do jornal A Batalha
1
Em fevereiro de 2019 passaram 100 anos sobre a criação do jornal A Batalha, que, surgindo como “porta-voz da organização operária”, se tornou em setembro de 1919 “órgão da Confederação Geral do Trabalho” (CGT) – então acabada de fundar.
Tendo por primeiro diretor um tipógrafo desde há muito ligado às lides do jornalismo sindicalista, Alexandre Vieira, este jornal chegou a ser o terceiro diário de maior expansão e só a dura repressão que se seguiu à revolução de fevereiro de 1927 o abalou com a destruição das instalações da CGT em Lisboa, na Calçada do Combro, onde funcionava a redação.
Embora com encerramentos forçados, suspensões, processos, assaltos e duas condenações judiciais, o diário operário da manhã tirou a elevada soma de 2.556 números entre 19-2-1919 e 26-5-1927. Iniciando-se à cautela com modesta tiragem, terá atingido no seu pico, em 1921, a cifra de 25 000 exemplares diários. Já em abril de 1919 o diário se intitulava “o terceiro jornal de maior venda em Lisboa”.
A expansão deveu-se à lucidez dos seus jovens redatores, todos com notável faro jornalístico e que vieram depois a consagrar-se como grandes mestres do jornalismo português do século XX. Citem-se ao acaso Jaime Brasil e Pinto Quartim, que nunca deixaram que o jornal se encerrasse em aspetos doutrinários, preferindo uma informação aberta, livre e atenta aos casos escaldantes do dia – mas sempre viva, crítica e personalizada.
Para assinalar o centenário do jornal, homenageando a sua vitalidade, mas também o rico historial da sua resistência ao fascismo, já que sobreviveu na clandestinidade e esteve até na origem da greve geral revolucionária de 1934, a Biblioteca Nacional (BNP) levou a cabo no outono de 2019 uma mostra evocativa, em que foram expostas as coleções das várias séries, incluindo a atual, a sexta, iniciada no rescaldo da Revolução dos Cravos e ainda hoje em publicação.
A consolidação da primeira série do diário, por volta de 1922, acabou por levar a uma diversificação das publicações que se lhe associavam – um suplemento semanal, literário e ilustrado; uma revista quinzenal, Renovação; a edição dum acervo de livros e brochuras, onde se destaca a série Novela Vermelha, que arregimentou escritores e jornalistas abertos ao sindicalismo libertário. 2
Pelo notável significado que apresenta, saliente-se aqui o suplemento semanal do jornal, cujo título completo era A Batalha – Suplemento Literário e Ilustrado. Fundado há 100 anos, mostrando uma regularidade de edição digna de nota, sempre com idêntico formato e as mesmas oito páginas, o hebdomadário publicava-se à2ª feira, dia em que o diário operário não saía à rua, devido ao descanso dos tipógrafos. Estreou-se em 3-12-1923, findou em 31-1-1927 e perfez 166 números.
Sem a pressão da atualidade que caía sobre o diário, o suplemento semanal mostrou-se mais reflexivo, dedicando espaço aos problemas da mulher em sociedade (prostituição, trabalho, sindicalização, educação, moda, sexualidade) e à crítica social (trabalho, associativismo, riqueza, religião, escola). Pelo meio havia a evocação de figuras modelares (Tolstoi, Gandhi, Gorki, Zola...), a divulgação de elementos básicos de cultura e até a atenção aos mais novos, na rubrica “Chico, Zeca e C.ª”, com a derradeira página reservada ao público juvenil.
Ainda que analiticamente outros assuntos, como a questão social e a emancipação das classes desfavorecidas, possam ocupar maior percentagem no cômputo geral do jornal, o mais significativo do suplemento, até pelo que articula, é a crítica artística e literária com um conjunto de inovadoras ponderações sobre o papel da arte e da literatura e que se distinguem de tudo o que então era corrente.
Numa época dominada pelos modernismos esteticistas que valorizavam uma ideia fechada e expletiva de arte, centrados que estavam nos meios de representação, o semanário introduziu pela primeira vez no século XX português o problema social da arte – e “A função social da Arte” se chama um linguado de Julião Quintinha (nº 19, 7-4-1924) que é um marco na matéria. Criou assim as bases para uma renovação do realismo e das tendências sociais em arte e literatura, que com o fim do naturalismo haviam desaparecido do tablado literário português.
Pelo aparo de jovens jornalistas criticamente bem preparados como Julião Quintinha e Jaime Brasil, este esforço judicativo foi acompanhado por uma ilustração prática no campo da criação artística, dando origem a um importante acervo que constitui hoje o primeiro e porventura o mais expressivo afluente do realismo social português do século XX – mais tarde chamado neorrealismo.
Autores como Stuart, Roberto Nobre e Cristiano de Carvalho, no domínio plástico, como Mário Domingues, Bento Faria, César
Frias, João Evangelista Campos Lima, Roberto das Neves e Ferreira de Castro, no campo literário, contribuíram de forma inapelável para a superação do esteticismo modernista e para o regresso duma conceção social da expressão artística que depressa deu ferazes frutos com o rejuvenescimento do romance.
O avanço do grupo foi tão efetivo no domínio da narrativa que Ferreira de Castro, o autor que mais colaboração deu ao semanário, com 155 peças, publicava no seu rescaldo duas obras-primas do romance neorrealista português, Emigrantes (1928) e A Selva (1930), que ganharam projeção internacional, tornando-se na promissora semente do novo romance social brasileiro com Jorge Amado.
3
Embora mais doutrinário que o diário e mais sistemático que o quinzenário Renovação, que se publicou em 1925 e 1926 , e tirou 24 números, o suplemento foi colaborado por gente que vinha de quadrantes políticos diferentes, como Nogueira de Brito, Arnaldo Brazão, Adelaide Cabette, Brito Camacho, Miguel Bombarda, se é que não opostos, como Rocha Martins, a que se juntaram escritores que nada tinham com a central operária – Teófilo Braga, Tomaz da Fonseca, Raul Brandão, José Régio, Santana Dionísio ou João Pedro de Andrade.
A riqueza desta invulgar obra cultural está hoje muito longe de ter a atenção merecida. Basta dizer que não há um estudo exaustivo sobre o sindicalismo revolucionário e o seu papel na sociedade portuguesa do primeiro quartel de Novecentos e a única investigação feita sobre o jornal A Batalha, de Jacinto Baptista, Surgindo vem ao Longe a Nova Aurora..., data de 1977.
Todos os trabalhos que incidem sobre o período – de Óscar Lopes a José-Augusto França – desconhecem a importância e até a simples presença desta corrente de ideias, que mobilizou porém admiráveis recursos numa obra de emancipação humana por meio do livro e do jornal que é de elementar justiça lembrar e interpretar.
Salvo os inovadores trabalhos de Ricardo António Alves, também os estudos que se ocupam do neorrealismo e das tendências realistas na literatura portuguesa do século XX, como os de Carlos Reis, têm inexplicavelmente passado em silêncio a tocante obra de renovação realista que se processou na década de 20 no seio das publicações saídas da Calçada do Combro.
Assinale-se, porém, o promissor trabalho que o projeto Revistas de Ideias e Cultura, de Luís Andrade, fez sobre o semanário que celebra agora o seu centenário, digitalizando-o e trabalhando os seus conteúdos, com uma equipa tutelada por um jovem investigador, António Baião, que é hoje quem está em melhores condições de inserir a cultura operária da CGT na problemática geral da cultura em Portugal no século XX.
Numa época dominada pelos modernismos esteticistas que valorizavam uma ideia fechada e expletiva de arte, centrados nos meios de representação, o semanário introduziu pela primeira vez no século XX português o problema social da arte