Os pés redondos de um escritor viajante
LISBOA, 4 DE JULHO DE 1965
Ontem à noite desembarcou aqui um brasileiro sem passagem de volta. E com apenas 600 dólares no bolso. Ele está pelos 24 anos, nasceu na Bahia, mas veio de São Paulo, na classe turística de um transatlântico italiano chamado Augustus (que fazia a linha Génova – Buenos Aires – Génova), e havia partido do porto de Santos ao entardecer de um cinzento 25 de junho. Chegou a Lisboa oito dias depois, num fim de tarde esplendoroso.
“Se o que vês não é apenas um monte de casas velhas, tu a mereces”, ele se disse, diante da cidade que se admirava ao espelho das águas, cheia de encanto e beleza, como a cantavam nos dois lados do Atlântico. Que magnífica porta de entrada à Europa! Mas... pés à saída do navio, haja expectativa, ansiedade, incerteza.
De mala à mão, despachou-se na alfândega sem problemas, recebeu e leu um telegrama, assinado por um desconhecido que lhe desejava boas vindas e se desculpava por não estar a esperá-lo, em virtude de um compromisso de última hora. Grata surpresa. Sentiu-se a adentrar um território hospitaleiro. E pegou um táxi, que o levou a uma pensão na Praceta João do Rio. Precisava ficar perto da Praça de Londres, onde havia um emprego à sua espera, numa agência de publicidade, garantido pelo próprio dono dela – o senhor Coelho – em carta que ele portava, à qual respondera informando o mês e o dia em que chegaria, daí o telegrama que lhe entregaram ao desembarcar.
Na pensão, mergulhou em águas quentes, dormiu o sono dos viajantes e hoje acordou cedo, ansioso para apresentar-se à empresa que, logo descobrirá, fica num belo endereço. Marinheiro de primeira viagem, regozija-se pelo mar de almirante em que navega até agora. Aguardemos, porém, a sua primeira tormenta. Ao chegar ao que julgava o seu porto seguro, não seria recebido pelo autor da carta, e sim por um seu lugar-tenente com toda a autoridade para dizer, na lata, que a vinda dele, o brasileiro, fora um equívoco. “Pensávamos que o senhor fosse um desenhador e não redator!”
Imagine o pânico. O desmancha-prazeres à sua frente esclarecia-lhe que Portugal não precisava importar redatores publicitários brasileiros, pois os tinha de sobra, a maioria poetas e escritores famosos. Nada a fazer. Só lhe restava (a ele, o desempregante), desculpar-se pelo mal-entendido e... “Passar bem!”
O brasileiro não se deu por vencido. “Quer dizer que a assinatura do seu patrão não significa
Mal chegara e acabava de ganhar a viagem, que, afinal, não era uma maluquice de um aventureiro que aceitara um emprego por carta sem ao menos perguntar qual seria o salário. De cara, ali naquela calçada, fora presenteado com o título de... um romance!
nada para o senhor?” A pergunta o desestabilizou, a ponto de levá-lo a puxar um lenço do bolso para enxugar o suor do rosto. A dizer: “Deixemos que ele próprio decida”. E telefonou para o senhor Coelho, que se encontrava em casa, a cuidar de assuntos pessoais. E ele, o poderoso chefão, não hesitou em honrar o seu compromisso firmado através de uma carta transatlântica.
Começará amanhã. Hoje, terá um dia para bater perna pela cidade. Antes, porém, iria engraxar os sapatos à porta do Café Londres, a observar os que iam e vinham pela calçada, um passo hoje, outro anteontem, a dar voltas em torno de si mesmos, num círculo de desesperança. Como se carregassem na alma o fardo de quatro décadas de totalitarismo da era de Dom António de Oliveira Salazar. Foi aí que um título lhe bateu à testa: Os homens dos pés redondos.
Pronto. Mal chegara e acabava de ganhar a viagem, que, afinal, não era, como parecera minutos atrás, uma maluquice de um aventureiro que aceitara um emprego por carta sem ao menos perguntar qual seria o salário. De cara, ali naquela calçada, fora presenteado com o título de... um romance!
Este que agora chega a Portugal, publicado pela Teodolito, com epígrafes de Fernando Pessoa e Alexandre O’Neill, posfácio da profª. Vânia Chaves, da Universidade de Lisboa, e a gratidão do seu autor às Correntes d’Escritas, que promovem uma minha volta a Portugal, para contar esta história. E a tantos aqui cujo convívio (o O’Neill à frente) foi fundamental à formação deste velho escriba.