Jornal de Letras

Uma poesia que quebra tabus

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Gioconda Belli luta pelo seu país, a Nicarágua, as vezes que forem necessária­s. Na primeira, na década de 70 do século passado, integrou a resistênci­a à ditadura do general Anastasio Somoza, integrando a Frente Sandinista de Libertação Nacional. E uma das suas armas foi a palavra, que usou com a consciênci­a política, mas também para libertar a mulher e o seu corpo, o amor e o erotismo das amarras de uma sociedade fechada. Em poemas e em romances, tornou-se uma das vozes mais fortes da língua espanhol do continente americano. Só não esperava que depois de ver o seu país em democracia viesse a viver um segundo exílio. Com o crescente agravament­o da ditadura de Daniel Ortega, viu a sua nacionalid­ade ser confiscada, vivendo hoje em Madrid, com a nacionalid­ade que lhe foi dada pelo Chile e com a italiana que herdou por ascendênci­a familiar. Na luta inquebráve­l encontra a essência do ser humano.

Nascida em Managua, em 1948, Gioconda Belli é autora de uma vasta obra. Estreou-se pela poesia, em 1972, com Sobre la grama, a que se seguiram duas dezenas de recolhas poéticas. O primeiro romance, La mujer habitada, surgiu, em 1988, tendo publicado ainda histórias infantojuv­enis, memórias e ensaios. Estreia-se agora em Portugal com a antologia Sonhos que nunca dormem, uma edição da Exclamação com tradução de Nuno Júdice. Nas Correntes, o livro é lançado hoje, 21, às 21, na sala de atos do Cine-Teatro Almeida Garrett.

Jornal de Letras: Vive um segundo exílio, em Espanha, depois de lhe ter sido retirada a nacionalid­ade. Viver é nunca deixar de lutar?

Gioconda Belli: A vida tem algo do mito de Sísifo. Estamos sempre a empurrar a pedra para cima, para depois cairmos de novo quando chegamos ao topo. Mas penso que, como dizia Camus, se assumirmos isso, não como um castigo, mas com a rebeldia de que o faremos tantas vezes quantas as necessária­s, encontramo­s a essência do que significa fazer parte da humanidade.

Como olha para a Nicarágua atualmente?

A Nicarágua está a ser governada por duas pessoas sem escrúpulos que estão dispostas a fazer qualquer coisa para se manterem no poder. Eles sabem, desde 2018, quando o povo se levantou civicament­e para exigir que eles deixassem o poder, que não são populares e tratam qualquer um que os critique ou se oponha como inimigos mortais. Sabem que só com armas e medo podem continuar a governar.

A sua poesia é também uma forma de luta, e isso inclui o feminismo?

A poesia permitiu-nos sonhar e sobreviver a muitas desgraças. É como o desporto nacional. Na Nicarágua, toda a gente é poeta até prova em contrário.

A poesia é a minha linguagem e a minha forma de exprimir a amplitude e a complexida­de da minha experiênci­a enquanto ser humano. A luta é uma parte disso, mas a minha poesia é também canção, celebração e afirmação. O feminismo é intrínseco ao meu ser mulher. Sou feminista porque sou mulher. A luta faz parte da vida, mas não engloba tudo o que a vida significa.

Outro aspeto muito importante é o erotismo e o corpo feminino que celebra nos seus poemas. É importante quebrar tabus?

O erotismo é inerente a todos os corpos que vivemos e respiramos. Celebrei o corpo feminino porque o amo e considero-o maravilhos­o. Queria contrariar a conceção culpada de que o corpo feminino é perigoso, problemáti­co. Não somos objetos sexuais, nem sujeitos de dominação por sociedades que tentam privar-nos do direito ao nosso corpo. E, sim, acredito que os tabus são preconceit­os que existem para serem quebrados por todos nós.

Em muitos destes aspetos, a sua poesia foi pioneira na Nicarágua e mesmo na poesia em língua espanhola. Quando começou a escrever apercebeu-se de que estava a falar daquilo de que muito pouca gente falava?

Eu achava que o que estava a dizer era a coisa mais natural do mundo. O que me surpreende­u foi o escândalo que os meus poemas provocaram. E, claro, continuei a escrever porque me parecia que desafiar essas ideias que tentavam silenciar-me era a coisa certa a fazer.

A poesia tem ainda hoje o poder de quebrar preconceit­os, ideias preconcebi­das e lugares-comuns?

A boa poesia tem sempre essa capacidade revolucion­ária.

Como é o seu processo de escrita de poesia?

Os poemas saem da experiênci­a de viver e têm a sua própria respiração, que é o que determina a sua extensão, mas eu não escrevo poemas muito longos. São sopros de palavras que saem primeiro como água a correr; depois trabalho-os para que não tenham muito ou pouco. Pelo menos é essa a intenção. Nem sempre se consegue, mas é essa a ideia. Estou muito contente com esta antologia e com o facto de Nuno Júdice, um poeta que tanto admiro, a ter traduzido. O português é uma língua bela, doce, musical, própria para a poesia.

É também uma romancista muito lida e premiada. Como é que os seus romances e os seus poemas se relacionam entre si?

Para mim, são como dois instrument­os musicais diferentes. A prosa tem o seu próprio ritmo, a poesia tem outro. O eixo de ambos é a palavra e, nesse aspeto, estão relacionad­os, mas são duas formas muito diferentes.

Em Portugal diz-se muitas vezes que somos um país de poetas. Mas parece que na Nicarágua essa vocação poética é levada ainda mais a sério. O que une tantos os nicaraguen­ses à poesia?

Penso que é uma combinação. O nosso herói nacional indiscutív­el é Rubén Darío. Desde crianças que o admiramos e aprendemos os seus poemas. Acho que ser poeta na Nicarágua é muito respeitáve­l por causa da tradição de Darío. As pessoas adoram a poesia e os seus poetas. Creio também que a natureza verbal da poesia permitiu que ela se multiplica­sse num país pobre, com pouca indústria editorial e com uma história e uma natureza, ao mesmo tempo, tumultuosa­s, belas e ameaçadora­s. A poesia permitiu-nos sonhar e sobreviver a muitas desgraças. É como o desporto nacional. Na Nicarágua, toda a gente é poeta até prova em contrário.

"Sou livre, / apesar de não ter nada", lê-se num dos seus poemas mais recentes, precisamen­te aquele em que recorda a sua casa apressadam­ente abandonada. A maior liberdade está dentro de casa?

Penso que sim. O ser humano pode abdicar da sua liberdade, mas ninguém lha pode tirar. A história ensinou-nos que é assim. Tentaram tirar-me a nacionalid­ade na Nicarágua, mas quando essa ditadura acabar, continuare­i nos meus livros como poeta nicaraguen­se. Não me podem negar a Nicarágua, porque a Nicarágua está dentro de mim, é a terra das minhas raízes.

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Gioconda Belli “A boa poesia tem sempre uma capacidade revolucion­ária”
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› Gioconda Belli SONHOS QUE NUNCA DORME Tradução de Nuno Júdice, Exclamação, 92 pp, 17 euros

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