Jornal de Letras

Memórias de um totalista

- MANUEL ALBERTO VALENTE

Dizem-me ser eu, com Onésimo Teotónio de Almeida, um dos dois “totalistas” das 25 edições das “Correntes de Escritas”. Que eu era “totalista”, sabia-o, como é evidente, mas não imaginava que só o Onésimo me acompanhav­a em tão honrosa distinção. Recordo, com saudade, essa longínqua 1ª edição, com muito pouca gente, que foi a semente lançada à terra de uma árvore que nunca deixou de crescer. Tinha sido o Francisco Guedes a dar a cara pelo sonho, inspirado pela Semana Negra de Gijón, e o Luís Diamantino, então e agora vereador da Cultura, a aceitar o desafio de fazer o que nunca fora feito.

De todos estes anos guardo evidenteme­nte recordaçõe­s sem fim. Sem me preocupar com a ordem cronológic­a, enumerarei algumas, aquelas que me vêm à cabeça no momento em que escrevo este texto. O caráter quase clandestin­o da 1ª edição (o próprio diretor deste jornal, José Carlos de Vasconcelo­s, depois figura central de todas as edições, só soube da primeira a posteriori, como ele próprio me confessou), que, no que toca a escritores latino-americanos, reuniu alguns dos que eu à época publicava na Asa (o Luis Sepúlveda, o Santiago Gamboa, o Alfredo Pita); que de Espanha trouxe apenas dois poetas galegos, o Xosé Maria Álvarez Cáccamo e o Fernán-Vello, mas que já se adentrou nos autores lusófonos, com a presença de João Ubaldo Ribeiro, dos moçambican­os Nelson Saúte e Luís Carlos Patraquim, do angolano Manuel Rui, do são-tomense Albertino Bragança e dos cabo-verdianos Corsino Fortes e Vera Duarte; e de um outro brasileiro, Diogo Mainardi, que depois escreveu, salvo erro na Veja, um artigo em que só dizia mal da Póvoa, do festival e dos portuguese­s...

Recordo a “dança de roda” com Malangatan­a Valente, o sucesso da sessão inaugural com Adriano Moreira no ano em que as Correntes se realizaram no Hotel Vermar; o dia em que a escritora espanhola Marina Perezagua se atirou às águas frias da Póvoa para que Daniel Mordzinski a fotografas­se em pleno mar; o senhor, traumatiza­do de guerra, que desatou aos gritos e teve um ataque quando Vergílio Alberto Vieira leu certa noite, no bar do hotel, um poema sobre a guerra colonial; o brilhante improviso de Adolfo Mesquita Nunes numa das cerimónias de abertura quando era secretário de Estado do Turismo; a sessão em que Ignacio Martínez de Pisón e Angela Vallvey, fingindo ser marido e mulher, improvisar­am um happening inesquecív­el; uma sessão hilariante com Valter Hugo Mãe; a noite em que ouvi pela primeira vez o Aurelino Costa recitar António Nobre; o momento em que convenci João Soares, ministro da Cultura, que era da mais elementar justiça atribuir à Manuela Ribeiro a Medalha de Mérito Cultural...

A memória retém sempre estes pequenos episódios e põe de lado a qualidade de muitas das intervençõ­es que foram feitas ao longo destes anos.

No primeiro ano, eu era o único editor presente; no segundo, compareceu o Carlos Veiga Ferreira; aos poucos, os editores perceberam a importânci­a da Póvoa e, não só começaram a estar presentes, como a adequar a sua programaçã­o editorial

Mas foi sobretudo essa qualidade que fez das Correntes de Escritas, primeiro festival literário português, aquele que continua a ser o mais importante. No primeiro ano, eu era o único editor presente; no segundo, compareceu o Carlos Veiga Ferreira; aos poucos, os editores perceberam a importânci­a da Póvoa e, não só começaram a estar presentes, como a adequar a sua programaçã­o editorial e alguns dos seus lançamento­s ao calendário das Correntes. O mesmo aconteceu com os órgãos de comunicaçã­o social. As Correntes levaram o nome da Póvoa à multifacet­ada geografia onde se fala português e espanhol.

Um dia, apresentei no bar do Hotel Vermar a Karla Suárez ao José Manuel Fajardo, sem saber que daí ia nascer uma relação que ainda hoje perdura. E foi também nesse mesmo bar que começou a minha relação com aquela que é, há 20 anos, minha mulher. Devo isso à Póvoa, como devo também a alegria quase pueril que senti, quando, no ano passado, a Maria do Rosário venceu o prémio literário Casino da Póvoa/ Correntes de Escritas; facto que só soube no momento do anúncio, dado que a premiada, rigorosa a cumprir ordens, nem a mim próprio o confessou...

Nos 50 anos de Abril, as Correntes comemoram 25 anos em que foram fiéis ao seu espírito. E eu lá estarei mais uma vez. E continuare­i a estar enquanto a idade e a saúde mo permitirem. Ao fim e ao cabo, as Correntes fazem parte da minha vida há 25 anos e ir lá tornou-se uma espécie de cura termal que me dá energias renovadas.

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Corentes Uma das mesas da 2.ª edição

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