Memórias de um totalista
Dizem-me ser eu, com Onésimo Teotónio de Almeida, um dos dois “totalistas” das 25 edições das “Correntes de Escritas”. Que eu era “totalista”, sabia-o, como é evidente, mas não imaginava que só o Onésimo me acompanhava em tão honrosa distinção. Recordo, com saudade, essa longínqua 1ª edição, com muito pouca gente, que foi a semente lançada à terra de uma árvore que nunca deixou de crescer. Tinha sido o Francisco Guedes a dar a cara pelo sonho, inspirado pela Semana Negra de Gijón, e o Luís Diamantino, então e agora vereador da Cultura, a aceitar o desafio de fazer o que nunca fora feito.
De todos estes anos guardo evidentemente recordações sem fim. Sem me preocupar com a ordem cronológica, enumerarei algumas, aquelas que me vêm à cabeça no momento em que escrevo este texto. O caráter quase clandestino da 1ª edição (o próprio diretor deste jornal, José Carlos de Vasconcelos, depois figura central de todas as edições, só soube da primeira a posteriori, como ele próprio me confessou), que, no que toca a escritores latino-americanos, reuniu alguns dos que eu à época publicava na Asa (o Luis Sepúlveda, o Santiago Gamboa, o Alfredo Pita); que de Espanha trouxe apenas dois poetas galegos, o Xosé Maria Álvarez Cáccamo e o Fernán-Vello, mas que já se adentrou nos autores lusófonos, com a presença de João Ubaldo Ribeiro, dos moçambicanos Nelson Saúte e Luís Carlos Patraquim, do angolano Manuel Rui, do são-tomense Albertino Bragança e dos cabo-verdianos Corsino Fortes e Vera Duarte; e de um outro brasileiro, Diogo Mainardi, que depois escreveu, salvo erro na Veja, um artigo em que só dizia mal da Póvoa, do festival e dos portugueses...
Recordo a “dança de roda” com Malangatana Valente, o sucesso da sessão inaugural com Adriano Moreira no ano em que as Correntes se realizaram no Hotel Vermar; o dia em que a escritora espanhola Marina Perezagua se atirou às águas frias da Póvoa para que Daniel Mordzinski a fotografasse em pleno mar; o senhor, traumatizado de guerra, que desatou aos gritos e teve um ataque quando Vergílio Alberto Vieira leu certa noite, no bar do hotel, um poema sobre a guerra colonial; o brilhante improviso de Adolfo Mesquita Nunes numa das cerimónias de abertura quando era secretário de Estado do Turismo; a sessão em que Ignacio Martínez de Pisón e Angela Vallvey, fingindo ser marido e mulher, improvisaram um happening inesquecível; uma sessão hilariante com Valter Hugo Mãe; a noite em que ouvi pela primeira vez o Aurelino Costa recitar António Nobre; o momento em que convenci João Soares, ministro da Cultura, que era da mais elementar justiça atribuir à Manuela Ribeiro a Medalha de Mérito Cultural...
A memória retém sempre estes pequenos episódios e põe de lado a qualidade de muitas das intervenções que foram feitas ao longo destes anos.
No primeiro ano, eu era o único editor presente; no segundo, compareceu o Carlos Veiga Ferreira; aos poucos, os editores perceberam a importância da Póvoa e, não só começaram a estar presentes, como a adequar a sua programação editorial
Mas foi sobretudo essa qualidade que fez das Correntes de Escritas, primeiro festival literário português, aquele que continua a ser o mais importante. No primeiro ano, eu era o único editor presente; no segundo, compareceu o Carlos Veiga Ferreira; aos poucos, os editores perceberam a importância da Póvoa e, não só começaram a estar presentes, como a adequar a sua programação editorial e alguns dos seus lançamentos ao calendário das Correntes. O mesmo aconteceu com os órgãos de comunicação social. As Correntes levaram o nome da Póvoa à multifacetada geografia onde se fala português e espanhol.
Um dia, apresentei no bar do Hotel Vermar a Karla Suárez ao José Manuel Fajardo, sem saber que daí ia nascer uma relação que ainda hoje perdura. E foi também nesse mesmo bar que começou a minha relação com aquela que é, há 20 anos, minha mulher. Devo isso à Póvoa, como devo também a alegria quase pueril que senti, quando, no ano passado, a Maria do Rosário venceu o prémio literário Casino da Póvoa/ Correntes de Escritas; facto que só soube no momento do anúncio, dado que a premiada, rigorosa a cumprir ordens, nem a mim próprio o confessou...
Nos 50 anos de Abril, as Correntes comemoram 25 anos em que foram fiéis ao seu espírito. E eu lá estarei mais uma vez. E continuarei a estar enquanto a idade e a saúde mo permitirem. Ao fim e ao cabo, as Correntes fazem parte da minha vida há 25 anos e ir lá tornou-se uma espécie de cura termal que me dá energias renovadas.