Uma história com mais de mil escritores
A semente, para germinar, tem de encontrar boa terra. E antes da história das Correntes d’Escritas havia uma cidade que se orgulhava de ser terra de muitos escritores. Alguns que lá nasceram, como Eça de Queirós, outros que iam a banhos às suas praias, como Camilo Castelo Branco, outros que por lá viveram, como Agustina Bessa-Luís, e outros que lhe dedicaram poemas e um romance, como Alexandre Pinheiro Torres. Além disso, ao longo do século XX, a Póvoa de Varzim foi lugar de muitos encontros e ficou conhecida a tertúlia que se reunia, com regularidade, no Diana Bar, em frente ao mar, não muito longe do Casino, e que juntava, entre outros José Régio, o seu irmão Júlio/ Saul Dias, Manoel de Oliveira, João Marques ou a já referida Agustina.
Foi nesta cidade, com esta tradição, que caiu a semente de um encontro literário que juntasse escritores de expressão ibérica, de Portugal e Espanha, mas também do universo hispânico do continente americano e a lusofonia brasileira, africana e timorense. A inspiração mais próxima e direta
A fórmula, na altura, era inovadora no contexto português e ainda hoje é seguida: escritores de diversas proveniências a dialogar em pé de igualdade. A falar sobre os seus livros mas também sobre o temas propostos
foi o Salón del Libro de Gijon, nas Astúrias, criado por iniciativa de Luis Sepúlveda, que se instalara naquela cidade espanhola no fim de muitas voltas pelo mundo.
Depois de uma passagem pelo festival na companhia de Manuel Alberto Valente, Francisco Guedes propôs um festival semelhante à Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, nomeadamente ao vereador Luís Diamantino. E os astros alinharam-se. O responsável autárquico, professor liceal (de literatura) de profissão, há muito que sonhava com uma iniciativa semelhante. Na autarquia havia ainda uma equipa, liderada por Manuela Ribeiro, hoje chefe da divisão de cultura, que se mostraria preparada para todo e qualquer desafio. Além disso, o centenário da morte de Eça de Queirós estava quase a chegar.
Assim nasceram, com esforços conjugados e com o melhor dos padroeiros, as Correntes d’Escritas, em fevereiro de 2000. A fórmula, na altura, era inovadora no contexto português e ainda hoje é seguida: escritores de diversas proveniências a dialogar em pé de igualdade. A falar sobre os seus livros mas também sobre o temas propostos. Na primeira edição, foram 23 autores, de 10 nacionalidades. E se na altura foram só cinco mesas (este ano serão 11), já havia um programa paralelo com visitas a escolas, sessões de poesia, exibição de filmes e oficinas.
Dessa primeira edição sobram episódios que continuam a ser contadas, sem esmorecerem com a passagem dos anos. E todos destacam a partilha de histórias, muitas vezes pela noite dentro, e alegria de se passar a ter um espaço de encontro de escritores da mesma língua ou de contextos culturais e históricos tão próximos.
Esse é, de resto, o segredo das Correntes d'Escritas. Sendo o maior festival literário português, também é um dos poucos encontros que reúne escritores vizinhos e afins que, no entanto, poucas vezes se encontram. A continuidade da sua filosofia, que nunca sofreu grande alterações, reforçou a ligação de muitos autores à Póvoa de Varzim.
Passadas 25 edições, o que impressiona agora são os números. Mais de mil convidados diferentes provenientes de três dezenas de países, com mais de 500 livros lançados em primeira edição portuguesa. E a contagem prossegue, com 120 convidados este ano, dos quais 31 são estreantes, e 40 novidades apresentadas.
Ao longo dos anos, as Correntes expandiu o seu conceito de festival. Duas das principais novidades surgiram, em 2004, com a introdução de uma conferência de abertura a anteceder o ciclo de mesas de conversas entre escritores. O primeiro
convidado foi Eduardo Lourenço, seguido por Agustina Bessa-Luís, Eduardo Prado Coelho, Nélida Piñon e Marcelo Rebelo Sousa. Em edições mais recentes, proferiram essa conferência de abertura Álvaro Laborinho Lúcio, José Tolentino Mendonça, Francisco Pinto Balsemão, Jorge Carlos Fonseca, Siza Veira e Manuel Sobrinho Simões.
A segunda novidade, também de 2004, foi a instituição do Prémio Literário Casino da Póvoa que desde então tem premiado, em anos alternados, livros de poesia e romance. Lídia Jorge, António Franco Alexandre, Carlos Ruiz Zafón, a primeira, Ana Luísa Amaral, Ruy Duarte de Carvalho, Gastão Cruz, Maria Velho da Costa, Pedro Tamen, Juan Gabriel Vásquez, Pepetela e Maria Teresa Horta são alguns dos autores já distinguidos.
Mais difícil é sintetizar a diversidade e qualidade de todas as intervenções. E foram muitos os grandes momentos, protagonizados por grandes escritores, que fizeram a história e a fama das Correntes d’Escritas. Ruben Fonseca, tão avesso a viagens e a exposição pública, surpreendeu tudo e todos com uma intervenção performativa, na qual apresentavam os elementos que fazem um escritor (loucura, alfabetização, paciência, motivação e imaginação). Do Brasil, já passaram pela Póvoa João Ubaldo Ribeiro, logo na 1ª edição a revelar-se um grande contador de histórias, Luís Fernando Veríssimo e a sua discrição, a música e a prosa de Ignácio de Loyola Brandão, ou a poesia de Lêdo Ivo. De Angola, houve edições em que se juntaram, numa mesma sala, Pepetela, Ana Paula Tavares, Ondjaki, José Eduardo Agualusa, Ruy Duarte de Carvalho e Luandino Vieira (este apenas como espectador atento). De Moçambique, a embaixada não tem sido menor, com Mia Couto, João Paulo Borges Coelho, Paulina Chiziane, Malangatana (que se viu no meio de uma roda de homenagem), mas também Guita Jr ou Nelson Saúte. De Cabo Verde, Germano Almeida e Corsino Fortes; de São Tomé, Conceição Lima; da Guiné, Tony Tcheka; e de Timor, Luís Cardoso.
Do universo da língua espanhol as Correntes têm convidado nomes consagrados e outros que, através da sua participação no encontro, puderam ser traduzidos em Portugal pela primeira vez. A título de exemplo, refira-se que, como padrinho do Festival, o chileno Luis Sepúlveda foi uma presença constante. De Cuba, veio Leonardo Padura e com mais regularidade Karla Suárez. Da Colômbia, Hector Abad Faciolince e Juan Gabriel Vasquez. Do México, Laura Esquível e Antonio Sarabia, que pouco depois se mudaria para Lisboa. E, de Espanha, entre muitos exemplos, foi possível ouvir Enrique Vila-Matas, Juan José Millás, Rosa Montero, o catalão Eduardo Mendoza ou o galego Carlos Quiroga.