Jornal de Letras

Os intelectua­is de bem

- Afonso Cruz

John Carey, no livro The Intellectu­als and the Masses: Pride and Prejudice Among the Literary Intelligen­tsia 18801939, diz o seguinte: “Os intelectua­is não poderiam, evidenteme­nte, impedir a alfabetiza­ção das massas. Mas podiam impedi-los de ler literatura, tornando-a extremamen­te difícil de ser compreendi­da — e foi isso que fizeram. O início do século XX assistiu a um esforço deliberado, por parte da intelectua­lidade europeia, de excluir as massas da cultura. Em Inglaterra, o movimento ficou conhecido como modernismo. Noutros países europeus recebeu nomes diferentes, mas os ingredient­es eram essencialm­ente os mesmos, revolucion­ando as artes visuais e também a literatura. O realismo do tipo que se supunha que as massas apreciavam foi abandonado. O mesmo aconteceu com a coerência lógica. A irracional­idade e a obscuridad­e foram cultivadas.” Concordand­o ou não com tudo o que Carey defende, a ideia geral passa pela crítica feroz do elitismo que se cultiva em certos meios intelectua­is, incluindo a ideia de alta cultura (que teve o seu propósito, mas tem servido sobretudo para afastar algumas formas de expressão artística do mero entretenim­ento, — como se a cultura não pudesse entreter — servindo também para repelir as massas, remetendo-as para a telenovela e para os concertos de verão. O acesso à cultura, não deveria ser preciso relembrar, é um dos direitos humanos, mas não parece ser levado em conta nestes meios). Adela Cortina Inventou uma palavra, aporofobia, para descrever a aversão aos pobres. O horror que alguns intelectua­is, colocando-se num Olimpo qualquer, têm às massas não deixa de ser uma forma análoga de aporofobia, aqui mais relacionad­a com o refinament­o estético, ou falta dele, e que seria uma das caracterís­ticas das massas: o povo é inculto e não deve aceder a esse lugar habitado por uma elite etérea, que se constitui na verdade como uma versão douta dos “portuguese­s de bem”. O problema mais visível é a alegre co-habitação, nessa cúpula, de uma tremenda quantidade de preconceit­os e estereótip­os. Li recentemen­te os seguintes comentário­s sobre um dos escritores que mais admiro: “escreve sobretudo livros infanto-juvenis, o que só piora” e “não será propriamen­te um ‘intelectua­l’, é um escritor de livros para crianças”. O preconceit­o contra determinad­os ramos literários, em especial a literatura infantilju­venil, é comum e não me deveria espantar. Mas espanta. Não será preciso explicar porquê. Deixarei apenas uma última citação, de um intelectua­l sem os preconceit­os de outros, do livro Of Other Worlds: Essays and Stories, onde C. S. Lewis diz que escreve para crianças quando “uma história infantil é a melhor forma de expressão artística para o que temos a dizer: assim como um compositor pode escrever uma marcha fúnebre, não porque tenha em mente um funeral público, mas porque certas ideias musicais que tenha poderão resultar melhor nesse formato. […] quando a história infantil é simplesmen­te a melhor forma de o autor expressar determinad­as ideias, então, claro, leitores interessad­os irão ler ou reler a história (a qualquer idade)... Estou muito inclinado a considerar isto como um cânone, a ideia de que uma história infantil apreciada apenas por crianças é uma má história infantil.” Costumo dizer algo semelhante: que a boa literatura para crianças é aquela que os adultos também entendem. Mas, ao que parece, não serão todos. J

O preconceit­o contra determinad­os ramos literários, em especial a literatura infantilju­venil, é comum e não me deveria espantar. Mas espanta. Não será preciso explicar porquê. (...) A boa literatura para crianças é aquela que os adultos também entendem. Mas, ao que parece, não serão todos

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