Tique taque… morrer no dia errado?
Quando se envelhece há todo um mundo que desaparece no silêncio, ao som apenas do tique-taque de relógios antigos de mesa em mogno, de parede, a corda, entre outros que registam a passagem do tempo. Um velho relojoeiro, tem mais de 90 anos, disse-me, “relógios são acessórios admirados pelo homem”, e acrescentou que alguns muito antigos saíram da sua loja – um balcão com pouco mais de um metro, espaço para dois ou três clientes e uma porta velha de madeira com acesso a uma arrecadação nos fundos – para acompanhar o tempo que passa.
Conhece um relógio comemorativo da eleição do Presidente Roosevelt, em 1933, decorado com um leme de navio, recuperou um relógio de Salazar usado nas escolas primárias dos anos 50, com uma casa típica portuguesa, que valem centenas de euros, “o relógio é um dispositivo utilizado como medidor do tempo desde a Antiguidade”.
E continuou, a Breguet, fundada em 1775, fez o relógio mais caro do mundo, o Maria Antonieta, vale 13 milhões de euros, a Piaget , fundada na Suíça em 1874, fez relógios com diamantes e outras pedras preciosas, a Cartier nascida em 1847, a Rolex em 1908 – independentemente do preço todos os relógios dão a mesma hora, pensei – mencionou os raros cronómetros militares antigos de bombas que atingem preços de milhares de euros, e ainda acrescentou que viu o relógio de pulso de Francisco Sá Carneiro. Tique-taque. Adiante.
O antigo primeiro-ministro de Portugal, Francisco Sá Carneiro, e o então ministro da Defesa, Adelino Amaro da Costa, morreram, em 4 de dezembro de 1980, em queda de avião em Camarate. Morreram no dia errado. A democracia portuguesa estremeceu…
Morrer no dia errado? O compositor Sergei Prokofiev, importante compositor russo morreu em 5 de março de 1953, no mesmo dia de Josef Stalin, Orson Welles e Yul Brynner em 10 de outubro de 1985, Edith Piaf e Jean Cocteau em 11 de outubro de 1963, Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni em 30 de julho de 2007… Quando morrem dois ilustres no mesmo dia desde que a informação se globalizou o mais famoso faz esquecer o outro (não em 1616, quando em 23 de abril morreram Shakespeare e Cervantes).
Tique-taque, em 22 de novembro de 1963 foi assassinado John Kennedy e morreu Aldous Huxley, o autor de Admirável Mundo Novo. Mas a pergunta que se fazia nos anos seguintes nos E.U.A. era: “O que estavas a fazer quando morreu Kennedy?”.
Depois do nascimento só a morte é inevitável. Não resisto a referir que as desgraças podem ser objeto de humor como nos ensinou Samuel Beckett – “Todos nós nascemos loucos” - e outros escritores, como Machado de Assis em “O enfermeiro”, pequeno conto pouco conhecido. O escritor brasileiro narra que em meados do século XIX, a troco de casa, comida, mesa e bom ordenado, Procópio, ajudante de um teólogo em Niterói, aceita servir de enfermeiro do velho coronel Felisberto, que padecia de reumatismo, aneurisma e outras mazelas.
Mas o militar era um doente insuportável, exigente, agressivo, injuriava o seu enfermeiro, ria-se das injúrias e nem os seus amigos o suportavam mais. Certo dia, após uma agressão mais violenta, Procópio enfrentou e esganou o coronel. Ao vê-lo morto, preocupadíssimo, tomou providências, amortalhou bem o cadáver, colocou-o, ansioso, no caixão que fechou na igreja, e no funeral, choroso, ouviu os comentários “coitado do Procópio, apesar do que padeceu…”.
DIAS DEPOIS, RECEBEU CARTA que lhe comunicava ser herdeiro universal do coronel Felisberto, em testamento. Perplexo leu e releu a carta. Procópio tornou-se um homem rico. Mandou construir a um especialista napolitano um túmulo de mármore para o seu antigo algoz com um belo epitáfio, fez doações a algumas entidades sociais locais e viveu muito bem, tique-taque… até ao fim da vida.
Ainda humor: conta-se que Ruben Braga e Otto Lara Resende, dois conhecidos escritores e cronistas brasileiros, estavam a comer jabuticabas na casa de um deles. As frutas estavam saborosas e Otto levantou-se de imediato para ir para o jornal quando ouviu a notícia da morte do Presidente John Kennedy. Ruben sossegou-o: “O cadáver não vai fugir e estas jabuticabas estão ótimas”. Adiante.
“A que horas chegou a Bissau? (Tique-taque) Veio de Lisboa ou de Dakar?”. Estávamos em fins de 2007 e fui jantar em casa de um empresário não distante das cores e do bulício do mercado de Bandim, ou do Palácio do Presidente (antiga sede do governador português da era colonial) ainda arruinado por bombardeamentos da última guerra civil. Nas ruas viam -se carros de luxo de líderes do tráfico de drogas pelas ruas esburacadas com lixo, cães, porcos e galinhas à solta.
À entrada da casa, o dono, um madeireiro português oriundo das florestas do Congo, afável e com voz suave, disparou-me, com um sorriso: “Ainda está em estado de choque… a que horas chegou a Bissau? Quer um gin tónico? Não se preocupe, o gelo é feito com água engarrafada”. “Sim, sim, um gin vem mesmo a calhar”, respondi. E depois apresentou-me os seus convidados. Tique-taque.
Saí de sua casa poucas horas depois e foi-me mostrada à porta o caminho para o hotel, passei pela casa de Nino Vieira, destacado antigo líder guerrilheiro e ex-Presidente da República, uma casa simples com as luzes já apagadas.
Não muito tempo depois do meu regresso a Lisboa, soube do seu assassinato e esquartejamento – “O cadáver não vai fugir…” - perpetrado por inimigos políticos.
Tique-taque, as democracias estremecem… e não há dia certo para morrer.