Contra a III Guerra Mundial
Faço a mesma pergunta que o grande intelectual comunista português, Bento Jesus Caraça (BJC), fez em 1932 e subscrevo o mesmo prognóstico. Depois de afirmar que perante a proximidade da I Guerra Mundial, “os intelectuais (com exceção de Romain Rolland na França, e eu acrescentaria, Karl Kraus na Áustria), em vez de lançarem na balança todo o peso do seu prestígio para procurarem evitar o desencadeamento da catástrofe e pôr ordem num caos de loucura, usaram desse mesmo prestígio para ativar a fogueira, para aumentar a desordem. Onde deviam elevar-se, aviltaram-se, ao desempenho de uma missão nobre e humana preferiram a traição”.
A pergunta é: terá, ao menos, a situação mudado no presente? Veem-se, porventura, sinais claros e precisos de um propósito de resgatar um passado escuro? A resposta de BJC é inequívoca: “A verdade é - não! Existem, sem dúvida, núcleos apreciáveis de ‘homens firmes’, de ‘homens de boa vontade’ que, na luta contra a guerra, põem o melhor da sua inteligência e da sua atividade, mas, infelizmente, a maioria, a grande maioria dos intelectuais apresta-se para uma nova renegação do espírito. Se uma guerra estalar, e nunca estivemos tão perto dela, veremos de novo surgir, por esse mundo, milhares de fáceis heróis de escrivaninha, a bolsar as mesmas torrentes de mentiras que levem à frente da batalha – os outros… e lhes assegurem a eles cómodas situações à retaguarda.” [1]
Dez nos antes, Karl Kraus escrevia em Os Últimos Dias da Humanidade: “O humor não é senão a acusação lançada a si próprio por alguém que não enlouqueceu ante a ideia de ter suportado testemunhar as coisas deste tempo no seu perfeito juízo”. [2] E desabafava: “Uma tão plena confissão de culpa de pertencer a esta humanidade há de ser bem-vinda em algum lugar, e alguma vez há de ter utilidade”.
Tal como Caraça, Rolland e Kraus, não me conformo com que uma nova guerra mundial aconteça, agora pela terceira vez. E certamente a última, se for, como é previsível que seja, uma guerra nuclear. “Não, em meu nome!” O papel do intelectual é juntar-se à cidadania ativa pela paz, aos partidos políticos e aos movimentos sociais que genuinamente querem a paz e denunciam as forças globais que promovem a guerra como meio de perpetuar o seu poder. Mas a experiência mostra-nos que essa luta, para ser eficaz, tem de ter uma dimensão organizativa. É dela que falarei neste texto.
Tal como Caraça, Rolland e Kraus, não me conformo com que uma nova guerra mundial aconteça, agora pela terceira vez. E certamente a última, se for, como é previsível que seja, uma guerra nuclear
DESDE HÁ CEM ANOS, A EUROPA vive a caminho de uma guerra enquanto cura as feridas da guerra anterior. De cada vez, as razões são diferentes, mas têm tido em comum o facto de, embora terem aqui nascidas, arrastarem o mundo consigo e, nessa medida, serem globais. Temos, pois, vivido entre guerras. É talvez pouco conhecido que mal terminara a II Guerra Mundial, já as forças conservadoras, sobretudo católicas e camponesas, se perguntavam voluntariosamente quando ia começar a nova guerra, agora contra a Rússia.
A retórica da emergente Guerra Fria excitava os ânimos, e estes só arrefeceram quando o Ocidente assistiu passivamente ao esmagamento soviético da revolta húngara de 1956. A paz estava para durar. A paz que durou foi a tornada possível graças à Guerra Fria e às muitas guerras quentes regionais em África, no Médio Oriente e na Ásia. O que há de novo agora?
Se analisarmos os debates internos nos EUA antes da intervenção destes nas duas primeiras guerras mundiais, verificamos que os EUA começaram por se declarar neutrais; a intervenção posterior a favor dos aliados foi de algum modo relutante e contra a ideologia do isolacionismo que tivera basta popularidade até meados do século XX. Ao contrário, a III Guerra Mundial em gestação é um projeto dos EUA. A Europa é apenas um aliado subalterno.
Porquê? Nas duas primeiras guerras, o imperialismo norte-americano estava numa fase ascendente e as guerras foram usadas apenas para consolidar essa posição globalmente dominante. De cada guerra os EUA saíram reforçados. Basta recordar que em 1948 o PIB dos EUA era quase metade do PIB global (em 2019 era 24%). Neste momento, os EUA estão em declínio e a guerra foi a opção tomada desde o tempo do presidente Clinton para travar o declínio, porque é no complexo militar-industrial que os EUA têm a mais inequívoca superioridade em relação aos poderes rivais. Basta recordar as mais de 800 bases militares espalhadas pelo mundo.
De facto, os EUA têm estado de guerra permanente desde a sua fundação, mas as guerras nunca são as mesmas, e apenas têm em comum o facto de terem lugar muito longe das suas fronteiras. Hoje, trata-se de uma guerra de hegemonia; se até algum tempo a opção nuclear era radicalmente excluída, hoje passou a ser um dos cenários possíveis. A gravidade da situação decorre de o declínio dos EUA não se manifestar apenas na política e na economia globais. É hoje flagrantemente visível a nível interno.
No país mais rico do mundo mais de três milhões de crianças morrem de fome todos os anos. [3] Dos jovens delinquentes (idades entre 10 e 17 anos) internados em instituições de detenção, 42% são negros apesar da percentagem de jovens negros na população jovem dos EUA ser de 15%.[4] Em 2023, houve 630 massacres ( mass shootings, em que mais de quatro pessoas foram mortas). Quase 50 mil pessoas morreram com armas de fogo em 2021, sendo que mais de metade foram suicídios. [5] Em 2023, havia 653.100 pessoas sem abrigo, um aumento de 12% em relação a 2022. [6] As eleições de 2024 serão certamente livres, mas não serão equitativas, dada a presença de dark money no financiamento das campanhas, e podem mesmo não ser pacíficas. [7]
EM FACE DESTE DECLÍNIO MULTIDIMENSIONAL, os EUA concentram cada vez mais energia na guerra de hegemonia. A guerra de hegemonia é a que pretende concentrar e manter o poder no Estado hegemónico em cujo interesse a ordem internacional é estabelecida, uma ordem, por natureza, unipolar. A dualidade de critérios na “ordem baseada em regras” (compare-se a Ucrânia com a Palestina) é a característica principal da ordem hegemónica.
Com o colapso da União Soviética e o fim do Pacto de Varsóvia (1991), a guerra de hegemonia pareceu ganha para sempre. Mas como o desenvolvimento do capitalismo global é desigual e combinado, os desafios à hegemonia dos EUA foram surgindo, em grande medida originados pelo desenvolvimento da China. A China comunista começou em 1949 a preparar-se para um século de fortalecimento que a reponha no lugar cimeiro do sistema mundial que manteve até 1830, ainda que desde o século XVI numa certa multipolaridade com a Europa imperial.
Como afirma Xulio Ríos em A metamorfose do Comunismo na China, Mao Tse Tung pôs a China de pé, Deng Xiaoping desenvolveu-a e Xi Jinping personifica o último impulso para tornar a China uma país poderoso com um posição central no sistema global, culminando em 2049 [8]. Enquanto Mao pôs de lado a cultura tradicional confucionista e Deng deu prioridade ao desenvolvimentismo em detrimento do marxismo, o Xiismo busca uma síntese das três ideologias fundadoras com a ideia do “socialismo com as peculiaridades chinesas na nova era”.
Porque, durante o tempo da globalização, a China foi a parceira que ajudou a disfarçar o declínio económico dos EUA, os alarmes da
guerra hegemónica só começaram a soar no tempo de Bill Clinton. Rapidamente os neoconservadores (um grupo ideológico que vai de Hilary Clinton a Victoria Nuland e seu marido, para quem não se deve negociar com os rivais da hegemonia dos EUA; deve-se antes destruí-los) assumiram o controle da politica externa dos EUA. Os rivais têm elos fracos e é por aí que se deve atacar. A China tem dois: o seu principal aliado, a Rússia, e Taiwan.
A guerra da Ucrânia foi desde o início uma estratégia de regime change (não na Ucrânia e sim na Rússia). O objetivo era desgastar os líderes políticos russos (sobretudo Putin) tal com se fizera na década de 1980 até que chegasse um duplo de Gorbatchov que transformasse a Rússia num amigo dos EUA, e, portanto, num inimigo da China, o que de imediato provocaria o confinamento da China à Ásia.
Como é hoje evidente, o objetivo falhou, a Rússia fortaleceu-se e a sua presença multissecular na Eurásia ampliou-se ainda mais. O povo mártir da Ucrânia e o povo europeu manipulado por uma guerra de propaganda sem precedentes, estão a pagar um alto preço por esta estratégia. Como Volodymyr Zelensky sabe pouco de relações internacionais, não conhecia a frase de Lord Palmerston com os olhos nos EUA: “As nações não têm amigos ou aliados permanentes; só têm interesses permanentes”.
É uma pura especulação, mas suspeito que se não puder ser substituído, Zelensky pode vir a ter um acidente fatal nos próximos tempos. O outro elo fraco da China é Taiwan e é aí que a guerra de hegemonia se pode vir a travar com mais violência. Será uma nova Ucrânia, mas onde os EUA aprenderão com os erros cometidos na Europa.
Como os senhores da história têm desprezo pela impertinência desta sua serva, não previram a resistência anti-colonial do povo palestiniano, liderado pelo Hamas. A guerra de Israel contra a Palestina é qualitativamente diferente da guerra da Rússia contra a Ucrânia por três razões principais. Por um lado, a primeira é uma guerra colonial de extermínio, a segunda é uma guerra de contenção. Por outro lado, os EUA não são um aliado de Israel. Os EUA são Israel, porque o lobby pró Israel controla tanto a política interna como a política externa dos EUA.
Finalmente, a guerra de Israel, longe de ser uma perversão do mundo ocidental, é o seu espelho mais cruel e fidedigno: uma civilização que desde o século XVI cria e celebra a humanidade, desumanizando a maior parte dela. Do outro lado, estão os derrotados históricos do expansionismo europeu, o mundo islâmico. A possibilidade de uma escalada global da guerra é neste caso qualitativamente muito maior. Daí o desinvestimento imediato na Ucrânia. Também no Médio Oriente os neoconservadores procurarão encontrar o elo fraco das alianças da China. Este elo é, sem dúvida, o Irão. Será ele provavelmente o próximo alvo.
[1] Bento de Jesus Caraça, Conferências e Escritos. Lisboa, 2ª edição 1978, 216;[2] Os Últimos Dias da Humanidade. Tradução de António Sousa Ribeiro. Lisboa, Antigona, 2023, 17-19; [3] https:// catholicconnect.care/facts-about-child-hungerin-america/; [4] https://www.sentencingproject. org/fact-sheet/black-disparities-in-youthincarceration/; [5] https://www.bbc.com/news/ world-us-canada-41488081; [6] https://nlihc.org/ resource/hud-releases-2023-annual-homelessassessment-report; [7]https://www.brookings. edu/articles/the-risk-of-election-violence-inthe-united-states-in-2024/; [8] A Metamorfose do Comunismo na China , Unha historia do PCCH ( 1921-2012). Pontevedra, Kalandraka,2021, 282.