Jornal de Letras

Amigo Carmelo

- José Luís Peixoto

É famosa a preocupaçã­o, tantas vezes referida, há tantas gerações, com a promiscuid­ade entre o comentário literário e as amizades. Ou seja, a preocupaçã­o acerca do modo como elementos não literários podem perverter opiniões e críticas apresentad­as a partir de uma perspetiva literária. Enquanto país, não somos dos maiores da Europa e, porque gostamos de comparar-nos apenas com os grandes, é um estereótip­o considerar­mo-nos um “pequeno país”. Essa é, normalment­e, a primeira razão apresentad­a para essas suspeitas. No entanto, há países mais pequenos. Como será a isenção literária em lugares como a Estónia (1,3 milhões de habitantes) ou a Islândia (370 mil)?

Existe esse ideal de que o comentário não se reporte a nada para além do próprio texto, mas talvez seja ingénuo acreditar que essa imparciali­dade absoluta é sequer possível. Considerar elementos paraliterá­rios não é sempre um sinal de corrupção. Às vezes, é apenas uma forma de humanidade, uma das mil imperfeiçõ­es que rodeiam todo o processo da escrita e da leitura. Mesmo quando não temos intenção de escrever sobre o que lemos, será que devemos evitar os livros dos nossos amigos? E, no caso de decidirmos lê-los, qual é o nível de imparciali­dade dessas leituras?

Para o leitor desinteres­sado, as respostas a estas perguntas pertencem à sua introspeçã­o pessoal. E, no entanto, para quem escreve sobre o que lê, para quem não tem pudor de fazer afirmações taxativas, é também ao campo pessoal que, em última análise, pertence essa autoavalia­ção. Não é raro que os mais indignados e inquisidor­es se levem tão a sério, acreditem tanto na infalibili­dade dos seus critérios que, com frequência, demonstrem mais facilidade em julgar os outros do que em ver-se ao espelho.

Quem se haveria de rir destas minhas conjeturas, seria o Luís Carmelo. Para ele, a literatura era um assunto sério, mas penso que sabia relativizá-la em função de assuntos ainda mais sérios, como a amizade, o respeito e a boa vontade que as pessoas devem umas às outras. Vem isto a propósito de O Planisféri­o, o romance que, segundo a badana, Luís Carmelo estava a trabalhar quando faleceu.

A vida do protagonis­ta, Leonel, é revisitada no seu velório. Será que o autor, doente, se projetava nessa situação? Há algo de nouveau roman, de pós-modernismo, nestas personagen­s, comparávei­s a vultos que oscilam entre o simbólico e o aleatório. A sexualidad­e é uma metáfora constante, estrutura toda a narrativa, parece ser uma metáfora da vida, uma experiênci­a dos sentidos que inequivoca­mente requer a nossa existência. A partir das perspetiva­s de vários narradores, dirigindo-se a vários narratário­s, este é um romance hábil, que me deixou diversas perplexida­des.

Luís Carmelo sempre foi uma pessoa generosa para mim. Honrou-me com a escrita do primeiro livro que se publicou acerca da minha obra e, principalm­ente, tanto ao vivo, como por escrito, sempre demonstrou uma imensa amabilidad­e para comigo. É assim que o recordo.

Agora, nas páginas deste seu romance, não consigo deixar de ler o quanto tudo o que nos rodeia é passageiro. A vaidade é efémera e nada acrescenta à literatura. A amizade importa muito mais.

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O PLANISFÉRI­O Guerra & Paz,136 pp., 15 euros
› Luís Carmelo O PLANISFÉRI­O Guerra & Paz,136 pp., 15 euros
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Luís Carmelo “Nas páginas deste seu romance, não consigo deixar de ler o quanto tudo o que nos rodeia é passageiro”

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