Amigo Carmelo
É famosa a preocupação, tantas vezes referida, há tantas gerações, com a promiscuidade entre o comentário literário e as amizades. Ou seja, a preocupação acerca do modo como elementos não literários podem perverter opiniões e críticas apresentadas a partir de uma perspetiva literária. Enquanto país, não somos dos maiores da Europa e, porque gostamos de comparar-nos apenas com os grandes, é um estereótipo considerarmo-nos um “pequeno país”. Essa é, normalmente, a primeira razão apresentada para essas suspeitas. No entanto, há países mais pequenos. Como será a isenção literária em lugares como a Estónia (1,3 milhões de habitantes) ou a Islândia (370 mil)?
Existe esse ideal de que o comentário não se reporte a nada para além do próprio texto, mas talvez seja ingénuo acreditar que essa imparcialidade absoluta é sequer possível. Considerar elementos paraliterários não é sempre um sinal de corrupção. Às vezes, é apenas uma forma de humanidade, uma das mil imperfeições que rodeiam todo o processo da escrita e da leitura. Mesmo quando não temos intenção de escrever sobre o que lemos, será que devemos evitar os livros dos nossos amigos? E, no caso de decidirmos lê-los, qual é o nível de imparcialidade dessas leituras?
Para o leitor desinteressado, as respostas a estas perguntas pertencem à sua introspeção pessoal. E, no entanto, para quem escreve sobre o que lê, para quem não tem pudor de fazer afirmações taxativas, é também ao campo pessoal que, em última análise, pertence essa autoavaliação. Não é raro que os mais indignados e inquisidores se levem tão a sério, acreditem tanto na infalibilidade dos seus critérios que, com frequência, demonstrem mais facilidade em julgar os outros do que em ver-se ao espelho.
Quem se haveria de rir destas minhas conjeturas, seria o Luís Carmelo. Para ele, a literatura era um assunto sério, mas penso que sabia relativizá-la em função de assuntos ainda mais sérios, como a amizade, o respeito e a boa vontade que as pessoas devem umas às outras. Vem isto a propósito de O Planisfério, o romance que, segundo a badana, Luís Carmelo estava a trabalhar quando faleceu.
A vida do protagonista, Leonel, é revisitada no seu velório. Será que o autor, doente, se projetava nessa situação? Há algo de nouveau roman, de pós-modernismo, nestas personagens, comparáveis a vultos que oscilam entre o simbólico e o aleatório. A sexualidade é uma metáfora constante, estrutura toda a narrativa, parece ser uma metáfora da vida, uma experiência dos sentidos que inequivocamente requer a nossa existência. A partir das perspetivas de vários narradores, dirigindo-se a vários narratários, este é um romance hábil, que me deixou diversas perplexidades.
Luís Carmelo sempre foi uma pessoa generosa para mim. Honrou-me com a escrita do primeiro livro que se publicou acerca da minha obra e, principalmente, tanto ao vivo, como por escrito, sempre demonstrou uma imensa amabilidade para comigo. É assim que o recordo.
Agora, nas páginas deste seu romance, não consigo deixar de ler o quanto tudo o que nos rodeia é passageiro. A vaidade é efémera e nada acrescenta à literatura. A amizade importa muito mais.