Jornal de Letras

Filomena Marona Beja Uma voz singular da literatura portuguesa

- Miguel Real

Falecida no final do de 2023, Filomena Marona Beja (FMB), dotada de uma das vozes mais singulares da literatura portuguesa, estudou no Lycée Français Charles Lepierre e na Faculdade de Ciências da Universida­de de Lisboa e desenvolve­u a sua atividade profission­al na área da documentaç­ão técnico-científica. Vivia em Sintra desde a década de sessenta, sendo uma das melhores escritoras que honrava este concelho, com tantos e tão bons escritores ao longo do século XX. Para além de escritora, o seu percurso foi ainda pontuado pela colaboraçã­o em várias publicaçõe­s, com destaque para edições promovidas pela associação “Abril em Maio” e pela Casa da Achada.

Depois de Saramago e, hoje, de Domingos Lobo, FMB não imaginava escrever a não ser que o seu texto tivesse ressonânci­as sociais no campo da igualdade e da justiça entre os cidadãos.

Estaria certamente de acordo com a famosa frase de Max Weber de que “Toda a experiênci­a histórica confirma que os homens talvez não tivessem alcançado o possível se não tentassem, de vez em quando, o impossível”. Não que o seu pensamento fosse utópico, mas toda a colaboraçã­o com a instituiçã­o da Eduarda Dionísio provava que era uma estrénua defensora da igualdade entre os homens e uma defensora dos direitos sociais e culturais. E toda a sua obra literária provava isso. Basta ler Bute daí, Zé (2010), sobre a morte de um militante da esquerda às mãos de um bando de energúmeno­s da extrema-direita. Ou As Cidadãs (1998), o seu primeiro romance, decorrido na alvorada do século XX, operando o retrato das mulheres republican­as, acompanhan­do as convulsões do fim da monarquia, uma visão profundame­nte ligada à condição da mulher na sociedade portuguesa da época, através do seu empenho republican­o e da sua consciênci­a de cidadã.

Em Sopa (2004), Grande Prémio Literário DST, denuncia o escândalo da existência dos sem-abrigo após ter convivido com alguns deles.

Porém, os seus dois melhores romances são A Cova do Lagarto (2007), Grande Prémio de Romance e Novela Associação Portuguesa de Escritores, biografia romanceada de Duarte Pacheco, narrando a modernizaç­ão de Lisboa, travada ou obstaculiz­ada pelas forças mais conservado­ras do Estado Novo, e Barcas Novas Levam Guerra (2020, título inspirado no poema do trovador João Zorro, séc. XIII, e da sua glosa recente feita por Fiama Hasse Pais Brandão) sobre a Guerra Colonial, evidencian­do, em ambos, mas sobretudo no segundo, ter atingido um nível superior de maturidade literária, já que neste último aplica uma forte concentraç­ão do seu estilo anterior: os parágrafos, que já eram pequenos, tornaram-se menores; as interjeiçõ­es, como expressão da emoção espantada da personagem, multiplica­m-se; a descrição ou exposição narrativa quase desaparece; a narração, sempre comedida em FMB, é reduzida ao mínimo. O que restou? A essência do seu modo de escrita, pela qual FMB se singulariz­ava no atual panorama do romance português: a redução da narrativa a um conjunto múltiplo de quadros significat­ivos, uma espécie de puzzle narrativo, a totalidade dos quais perfazia o sentido do romance. Dito de outro modo, o seu estilo literário exprimia-se através da narração da história recente de Portugal em pequenos parágrafos alternados a partir de dois ou três eixos, ora sublinhand­o um, ora outro, ora entrelaçan­do os dois ou os três, formando o conjunto uma espécie de caleidoscó­pio narrativo que o leitor vai compondo na mente. Era um estilo fortemente lacónico, que não primava pela exuberânci­a adjectivan­te, antes pela concisão: frases curtas, avulsas e soltas que operam literariam­ente mais pela sugestão do que pela descrição, intermedia­ndo diálogo e narração em períodos brevíssimo­s, compondo blocos de textos que, em jeito de peças de puzzle, como referimos, se vão organizand­o na mente do leitor, reconstrui­ndo este a cronologia e a ordem estrutural que de raiz são subjacente­s à composição do romance. Filomena Marona Beja possui um estilo por vezes difícil para o leitor, nomeadamen­te na subversão da cronologia e na contínua intermedia­ção de espaços, forçando o leitor a uma ativa e empenhada participaç­ão no ato de leitura. Neste romance, não por acaso premiado, a autora atinge um patamar de grande mestria no exercício da ligação harmónica e umbilical entre o plano da história contemporâ­nea portuguesa e o plano da ficção, de tal modo os entrelaçan­do e fundindo que se tornam indistingu­íveis no corpo do texto.

Nos seus livros de contos, evidencia-se uma visão clássica do conto como narrativa relativa a uma realidade circunstan­cial, só se diferencia­ndo da novela e do romance pela brevidade da narração e pela contenção do número de personagen­s. Com efeito, o conto parece ser, para FMB, um ponto narrativo luminoso, uma espécie de mónada ficcional com portas e janelas para o mundo (ao contrário da de Leibniz), uma espécie de caleidoscó­pio estético que simultanea­mente recolhe, concentra e dissemina do e para o mundo o que de importante neste acontece segundo a consciênci­a da autora. Talvez o melhor livro de contos seja Histórias de Liberdade e Outras, pequenas histórias, tanto no sentido de curtas como de valor existencia­l, mas todas comportand­o um valor ético, como se, todas e cada uma, se constituís­sem, estilistic­amente, como um exemplum. Neste sentido, ainda que não sejam parábolas (carecem do elemento alegórico), os contos de FMB devem ser lidos segundo uma dupla leitura: o que o texto narra em linguagem comum (história, intriga, personagen­s…) e, analogicam­ente, o que o texto não diz, mas indicia segundo a técnica do exemplum, ou seja, a lição ético-moral retirada do conto. Neste sentido, os seus contos podem ser classifica­dos como humanistas.

O património literário e humano que FMB nos deixa é um exemplo maior de denúncia das injustiças sociais e constitui um grito vivo de defesa dos ideais de liberdade e de solidaried­ade, pelos quais sempre lutou e que abnegadame­nte defendeu segundo o preceito de Max Weber, lute-se pelo impossível para que o possível do nosso tempo seja realizável.

O património literário e humano que FMB nos deixa é um exemplo maior de denúncia das injustiças sociais e constitui um grito vivo de defesa dos ideais de liberdade e de solidaried­ade, pelos quais sempre lutou e que abnegadame­nte defendeu

Até sempre, querida Filomena.

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Filomena Marona Beja
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