Filomena Marona Beja Uma voz singular da literatura portuguesa
Falecida no final do de 2023, Filomena Marona Beja (FMB), dotada de uma das vozes mais singulares da literatura portuguesa, estudou no Lycée Français Charles Lepierre e na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e desenvolveu a sua atividade profissional na área da documentação técnico-científica. Vivia em Sintra desde a década de sessenta, sendo uma das melhores escritoras que honrava este concelho, com tantos e tão bons escritores ao longo do século XX. Para além de escritora, o seu percurso foi ainda pontuado pela colaboração em várias publicações, com destaque para edições promovidas pela associação “Abril em Maio” e pela Casa da Achada.
Depois de Saramago e, hoje, de Domingos Lobo, FMB não imaginava escrever a não ser que o seu texto tivesse ressonâncias sociais no campo da igualdade e da justiça entre os cidadãos.
Estaria certamente de acordo com a famosa frase de Max Weber de que “Toda a experiência histórica confirma que os homens talvez não tivessem alcançado o possível se não tentassem, de vez em quando, o impossível”. Não que o seu pensamento fosse utópico, mas toda a colaboração com a instituição da Eduarda Dionísio provava que era uma estrénua defensora da igualdade entre os homens e uma defensora dos direitos sociais e culturais. E toda a sua obra literária provava isso. Basta ler Bute daí, Zé (2010), sobre a morte de um militante da esquerda às mãos de um bando de energúmenos da extrema-direita. Ou As Cidadãs (1998), o seu primeiro romance, decorrido na alvorada do século XX, operando o retrato das mulheres republicanas, acompanhando as convulsões do fim da monarquia, uma visão profundamente ligada à condição da mulher na sociedade portuguesa da época, através do seu empenho republicano e da sua consciência de cidadã.
Em Sopa (2004), Grande Prémio Literário DST, denuncia o escândalo da existência dos sem-abrigo após ter convivido com alguns deles.
Porém, os seus dois melhores romances são A Cova do Lagarto (2007), Grande Prémio de Romance e Novela Associação Portuguesa de Escritores, biografia romanceada de Duarte Pacheco, narrando a modernização de Lisboa, travada ou obstaculizada pelas forças mais conservadoras do Estado Novo, e Barcas Novas Levam Guerra (2020, título inspirado no poema do trovador João Zorro, séc. XIII, e da sua glosa recente feita por Fiama Hasse Pais Brandão) sobre a Guerra Colonial, evidenciando, em ambos, mas sobretudo no segundo, ter atingido um nível superior de maturidade literária, já que neste último aplica uma forte concentração do seu estilo anterior: os parágrafos, que já eram pequenos, tornaram-se menores; as interjeições, como expressão da emoção espantada da personagem, multiplicam-se; a descrição ou exposição narrativa quase desaparece; a narração, sempre comedida em FMB, é reduzida ao mínimo. O que restou? A essência do seu modo de escrita, pela qual FMB se singularizava no atual panorama do romance português: a redução da narrativa a um conjunto múltiplo de quadros significativos, uma espécie de puzzle narrativo, a totalidade dos quais perfazia o sentido do romance. Dito de outro modo, o seu estilo literário exprimia-se através da narração da história recente de Portugal em pequenos parágrafos alternados a partir de dois ou três eixos, ora sublinhando um, ora outro, ora entrelaçando os dois ou os três, formando o conjunto uma espécie de caleidoscópio narrativo que o leitor vai compondo na mente. Era um estilo fortemente lacónico, que não primava pela exuberância adjectivante, antes pela concisão: frases curtas, avulsas e soltas que operam literariamente mais pela sugestão do que pela descrição, intermediando diálogo e narração em períodos brevíssimos, compondo blocos de textos que, em jeito de peças de puzzle, como referimos, se vão organizando na mente do leitor, reconstruindo este a cronologia e a ordem estrutural que de raiz são subjacentes à composição do romance. Filomena Marona Beja possui um estilo por vezes difícil para o leitor, nomeadamente na subversão da cronologia e na contínua intermediação de espaços, forçando o leitor a uma ativa e empenhada participação no ato de leitura. Neste romance, não por acaso premiado, a autora atinge um patamar de grande mestria no exercício da ligação harmónica e umbilical entre o plano da história contemporânea portuguesa e o plano da ficção, de tal modo os entrelaçando e fundindo que se tornam indistinguíveis no corpo do texto.
Nos seus livros de contos, evidencia-se uma visão clássica do conto como narrativa relativa a uma realidade circunstancial, só se diferenciando da novela e do romance pela brevidade da narração e pela contenção do número de personagens. Com efeito, o conto parece ser, para FMB, um ponto narrativo luminoso, uma espécie de mónada ficcional com portas e janelas para o mundo (ao contrário da de Leibniz), uma espécie de caleidoscópio estético que simultaneamente recolhe, concentra e dissemina do e para o mundo o que de importante neste acontece segundo a consciência da autora. Talvez o melhor livro de contos seja Histórias de Liberdade e Outras, pequenas histórias, tanto no sentido de curtas como de valor existencial, mas todas comportando um valor ético, como se, todas e cada uma, se constituíssem, estilisticamente, como um exemplum. Neste sentido, ainda que não sejam parábolas (carecem do elemento alegórico), os contos de FMB devem ser lidos segundo uma dupla leitura: o que o texto narra em linguagem comum (história, intriga, personagens…) e, analogicamente, o que o texto não diz, mas indicia segundo a técnica do exemplum, ou seja, a lição ético-moral retirada do conto. Neste sentido, os seus contos podem ser classificados como humanistas.
O património literário e humano que FMB nos deixa é um exemplo maior de denúncia das injustiças sociais e constitui um grito vivo de defesa dos ideais de liberdade e de solidariedade, pelos quais sempre lutou e que abnegadamente defendeu segundo o preceito de Max Weber, lute-se pelo impossível para que o possível do nosso tempo seja realizável.
O património literário e humano que FMB nos deixa é um exemplo maior de denúncia das injustiças sociais e constitui um grito vivo de defesa dos ideais de liberdade e de solidariedade, pelos quais sempre lutou e que abnegadamente defendeu
Até sempre, querida Filomena.