Cultura e palco de cidadania
Esta passagem de Ano não foi igual às outras para os habitantes de Aveiro. As badaladas do fim do Ano marcaram o dealbar de um acontecimento único: o início de Aveiro Capital Portuguesa da Cultura 2024, a primeira cidade portuguesa, do ciclo, a usufruir deste estatuto.
2024 arrancou com o Concerto de Ano Novo dirigido pelo maestro Martim Sousa Tavares: Clássica After Hours. Se a primeira parte se desenvolveu a partir de um universo clássico, já a segunda veio a revelar-se bem contemporânea, com a peça de Pedro Lima, encomendada pela Câmara para surpreender o momento, e a Orquestra Filarmonia das Beiras. O maestro uniu mundos díspares do panorama musical, tendo conseguido esgotar o Teatro Aveirense nas duas sessões programadas. Durante janeiro, é ainda possível visitar a XVI edição da Bienal Internacional de Cerâmica Artística de Aveiro, nascida em 1989 numa cidade em que a cerâmica é um factor identitário, imprescindível à sustentabilidade económica e à inovação.
O presidente da Câmara Municipal de Aveiro, José Ribau Esteves, e José Pina — coordenador de Aveiro 2024 e figura de proa na candidatura de Aveiro a Capital Europeia da Cultura 2027 — apresentaram a programação do ano, tendo o presidente sublinhado a ligação dos aveirenses ao mar e à ria, como um dos pilares da identidade da região. E a identidade é, de facto, na sua relação com a cultura, o primeiro elemento cultural a ser tematizado, durante o primeiro trimestre do ano. Os restantes problematizarão a relação entre a cultura e a democracia, a sustentabilidade e a tecnologia, sempre referenciada à inovação. Estes serão os temas postos em palco através de uma programação repleta de atividades nas várias áreas do entretenimento, do saber e da criação artística.
José Pina enfatiza ainda um facto importante e de que se espera a melhor continuidade: a descentralização municipal, com o concomitante envolvimento dos municípios da região. Dar voz à criatividade e aos equipamentos culturais da região é engrandecer, quer os municípios, quer a cultura da cidade de Aveiro. Esta é uma ótima ocasião para a promoção de confluências culturais, cumpridas em parcerias e convivialidade. No contexto de Aveiro 2024, o programa estende-se a eventos e a espetáculos desenvolvidos em parceria com outros municípios da Comunidade Intermunicipal da Região de Aveiro, como é o caso de Pieris Napi - Papilons d’Eternité, onde Tânia Carvalho e Matthieu Ehrlacher encetam uma aventura musical com o Grupo Folclórico da Casa do Povo de Cacia.
Não esquecendo que a inovação está sempre ancorada na tradição, Aveiro 2024 contempla ainda os seus eventos anuais mais marcantes, e que lhe conferem identidade e distinção, como o Festival dos Canais e Dunas São Jacinto ou a Aveiro Tech Week, que integra as programações do PRISMA e do Criatech nas áreas do vídeo, da luz e da arte e tecnologia. Confere, igualmente, um lugar especial aos seus parceiros mais tradicionais, como as Festas de S. Gonçalinho e a Feira de Março. No âmbito institucional, a cultura em Aveiro faz-se representar também pelo vereador da Cultura, Miguel Capão Filipe e pela chefe da divisão, Sónia Almeida.
Embora a programação da Capital Portuguesa da Cultura seja conduzida pela Câmara, a instituição parece ciente da relevância da participação dos seus cidadãos e das iniciativas de caráter privado. Nesse sentido, o evento ver-se-á enriquecido por felizes coincidências, como
Preparo-me para entrar no palco aberto de Aveiro 2024. Banhada pela luz do sol e do sal, considero as possíveis intersecções entre o ideal e o real de um cenário infinito de cultura e cidadania, de todos e para todo os 50 anos da Universidade de Aveiro, parceiro natural da Câmara, os 200 anos da Vista Alegre e os 45 do GrETUA (Grupo Experimental de Teatro da U. A.). A Vista Alegre já foi palco, no dia 6 de Janeiro, de um momento simbólico de criação da primeira peça do ano, seguindo-se um dueto de saxofones com Rodrigo Amado e Ricardo Toscano.
Por entre outras iniciativas e projetos de relevo, que incluem associações, artistas, grupos informais e negócios criativos, o GrETUA tem vindo a destacar-se nos últimos anos pela programação arrojada e pelo desenvolvimento de projetos sistemáticos. Com direção artística de Bruno dos Reis (tendo a Associação Académica como patrono, a Universidade), o GrETUA aufere, desde 2018, de um estatuto que lhe permite uma curadoria independente, não apenas no que toca ao Teatro, mas também em áreas como a Dança, a Música e a Formação.
AVEIRO FOI SEMPRE UMA CIDADE CÉNICA, estruturada pela paisagem da laguna, pela geometria das salinas e pelas montanhas de sal, mas o que lhes dá alento é a luz que espelha a cidade ao infinito, pelo que o mote escolhido para Aveiro 2024: “O ano como palco. Um cenário infinito” veste a cidade dos canais na sua desmedida.
Tenho em mim várias gerações de Aveiro: sou filha, neta e sou mãe. Talvez seja do meu avô - que escrevia livros em segredo - que o meu pai, Vasco Branco (1919-2014), herdou os genes da criatividade, embora eu creia que os genes de Aveiro, e a inteligência crítica da minha mãe, tiveram um papel fulgurante na sua atividade artística. Em todas as vertentes a que se dedicou, o cinema, a pintura, a literatura e a cerâmica, está visível também em murais da cidade salgada, as manifestações artísticas de Vasco Branco são quase sempre voltadas para a laguna e as suas vivências.
É dessa matéria que vive Gente Trigueira, curta de Vasco Branco a ser projetada no âmbito do Ciclo de Cinema Temático. Com os filmes legendados pelos troféus de Festivais na Sala de Cinema da nossa casa, oriundos dos cinco cantos do mundo, o trabalho cerâmico também faz parte das cidades, em paredes ou em murais. Uma parte espacial de Aveiro pertence ao seu universo cerâmico e não posso deixar de pensar que talvez ele sobrevoe algumas das propostas programadas para 2024. Que talvez acompanhe a atividade dos artistas locais e dos grupos informais que contribuem com teimosia para manter viva a cultura, e sei que não deixará de comparecer na exposição do seu grande amigo Mário Sacramento, companheiro nas tertúlias de índole política e literária.
Depois, talvez visite no Museu de Santa Joana o magnífico barroco com os seus anjos, que convive hoje com as exposições de Arte Contemporânea e outros eventos do Museu, cuja direção está nas mãos sabedoras de José Rebocho Christo. É desta anacronia entre o passado e presente que nasce a inspiração para a curta de Vasco Branco, intitulada A Luz e os Anjos, em grande parte filmada neste Museu.
Mesmo em frente ao Museu, o meu pai há de deter-se um pouco mais sobre a nossa casa, feliz por ser agora um ecossistema criativo, bem vivo: um espaço de confluência entre artistas, técnicos e pensadores, entre colaboradores, viajantes, voluntários e artistas em residência. É também numa lógica de continuidade entre passado e futuro que se constrói uma grande parte da ação cultural da VIC // Aveiro Arts House, desenvolvida através da associação cultural Navalha e com direção artística do meu filho, Hugo Branco.
Combinação improvável entre Casa Museu, residência artística, guesthouse e centro cultural, a VIC tem vindo desde 2016 a promover iniciativas comunitárias de arte participativa, projetos de cooperação internacional e programas de cocriação e formação nas artes, como foi o caso do recente Break in Case of Emergency, seminário internacional dirigido a músicos e editoras independentes, que reuniu em Aveiro 25 dos mais relevantes oradores e organizações representativas do panorama musical independente a nível mundial.
ALÉM DA SUA PROGRAMAÇÃO HABITUAL, incluindo as sessões de Literatura que organizo periodicamente, os ciclos de cinema independente e concertos de carácter intimista e exploratório, para 2024 a VIC está a preparar a sua participação anual no Festival dos Canais, com a programação de duas das áreas mais queridas do evento: o lançamento de Transmissions from Down Below, projeto apoiado pela Câmara. que se traduz numa série de vídeos de atuações de artistas da região, intercaladas com entrevistas aos mesmos, bem como a continuidade da coleção de Arte Sonora New Chronologies of Sound, também ela desenvolvida em parceria com a Câmara, tendo vindo materializar-se ainda numa exposição acusmática no Museu de Arte Moderna de Medellín. Empenhada em dar continuidade à iniciativa Rajada - Windy Sounds from Aveiro, que reuniu 16 projetos musicais numa lógica de cocriação, tendo fixado nos formatos vinil e CD o atual panorama musical alternativo da região, a VIC tem ainda programado para 2024 o lançamento de mais uma série de livros, discos e obras em formatos não convencionais, através da VIC NIC, o seu braço editorial.
Fazendo dos processos colaborativos e do trabalho em rede o seu principal modus operandi, a VIC nunca esquece, porém, o seu legado. Na sequência da celebração, em 2019, dos 100 anos de Vasco Branco, fruto também de uma parceria com o município, uma das principais preocupações para o futuro próximo está intimamente ligada à urgência no restauro, conservação, interpretação e dinamização do património artístico de Vasco Branco, inegavelmente um dos expoentes máximos na identidade artística da região.
À saída da VIC, rodeio a rotunda das Pontes, sabendo que a partir de 10 de Junho — Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas — esta servirá também de palco para uma escultura de Rui Chafes, encomendada para o efeito. Preparo-me para entrar no palco aberto de Aveiro 2024. Banhada pela luz do sol e do sal, considero as possíveis intersecções entre o ideal e o real de um cenário infinito de cultura e cidadania, de todos e para todos.