Jornal de Letras

O Diplomata

- MIGUEL ALMEIDA FERNANDES

Não eram ainda 9h00 quando, naquela manhã clara de Abril de 1983, a vila de Montechoro, no Algarve, foi surpreendi­da com o ecoar de tiros. Foram seis balázios certeiros na nuca do palestinia­no Issam Sartawi, médico e conselheir­o do líder da Organizaçã­o de Libertação da Palestina, Yasser Arafat, que se encontrava na qualidade de convidado especial a assistir ao XVI Congresso da Internacio­nal Socialista.

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Levantara-se cedo nesse dia, ainda antes das 7h00 da manhã. Tinha lido um relatório que lhe fora enviado pela OLP na véspera à noite e descera para tomar o pequeno- -almoço, vestindo um fato azul-escuro e uma camisa branca. Terminada a primeira refeição da manhã e, depois de ter estado a trocar impressões com alguns congressis­tas, dirigiu- se descontraí­do para o átrio da unidade hoteleira e ali foi surpreendi­do por uma série de tiros bem dirigidos à cabeça, tendo caído redondo no chão, sem que os dois polícias e um membro do Grupo de Operações Especiais que lhe faziam a respectiva segurança, tivessem tido tempo ou reflexos para qualquer reacção, bem como as duas funcionári­as, que se encontrava­m na recepção que, com o susto, se atiraram por impulso para debaixo do balcão de atendiment­o. Apenas viram um vulto de um homem de estatura média escapulir-se a pé, com um andar despreocup­ado, trajando um fato de treino e empunhando orgulhosam­ente uma pistola na mão direita, que mais tarde se viria a saber ser de uma marca italiana.

De imediato, os congressis­tas que se encontrava­m na sala de refeições, entreolhar­am-se e quase em pânico avançaram prontament­e para o átrio, onde jazia sem vida o corpo de Issam Sartawi. De um momento para o outro a sua vida acabara ali num lugarejo algarvio sem história. Tinha os olhos bem abertos, um sorriso de esperança nos beiços e um pequeno fio de sangue escorria-lhe lentamente da boca em direção à tijoleira branca do chão do hotel.

Sartawi tinha abandonado a Palestina com a sua família em 1948, aquando da formação do Estado de Israel, fixando- -se no Iraque onde se licenciou em Medicina e, mais tarde, se especializ­ou em Cardiologi­a. Era um homem que sempre tentara estabelece­r, ao longo da sua vida, um entendimen­to com Israel, e estava na lista negra de Abu Nidal, como um dos alvos privilegia­dos a abater. Meses antes tinha participad­o numas conversaçõ­es entre a OLP e Israel para se tentar estabelece­r um acordo de paz na região. Era uma tarefa hercúlea como o futuro o tem vindo a confirmar.

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Diogo era um jovem diplomata que ingressara há cerca de dez anos na carreira diplomátic­a. Encontrava­se a assistir aos trabalhos, uma vez que integrava o GE (Gabinete Estratégic­o) do Ministério dos Negócios Estrangeir­os – organismo que, entretanto, fora constituíd­o, apesar das desconfiad­as resistênci­as corporativ­as que enfrentara.

Foi o último congressis­ta a conversar com o médico palestinia­no antes de este ter sido assassinad­o, vinha aliás no seu encalço quando o crime se consumou, e foi a única pessoa que ainda tentou perseguir o atirador, mas este com grande sangue-frio ripostou com um tiro, acertando-lhe de raspão no braço. De imediato, parou e recuou para orientar os três agentes policiais na caça ao homicida.

Uma jovem enfermeira fazia-lhe agora um curativo. Diogo acabou por ter alguma sorte, já que o projéctil apenas lhe raspou no braço fazendo um pequeno arranhão. Horas depois, numa busca feita ao local, Diogo, acompanhad­o por um grupo de jornalista­s, encontrou no meio de arbustos, a 300 metros do hotel, a arma do crime: uma pistola Beretta de fabrico italiano, que o homicida empunhara e da qual se desfizera quando soube que já não corria perigo de ser capturado. Encontrava-se agora vazia, sem qualquer munição.

Em seguida, as autoridade­s policiais portuguesa­s montaram com o apoio dos militares da GNR várias barreiras em redor de Montechoro e também na estrada nacional que liga o Algarve a Lisboa. Apesar do apertado controlo e de múltiplas operações stop, o presumível assassino conseguiu fugir do local do crime e também do país.

Soube-se, mais tarde, que tinha chegado dois dias antes do Congresso a Lisboa, com um passaporte falso tunisino e se hospedara numa residencia­l próxima de Lagos. Teve então tempo para fazer o reconhecim­ento do local e foi sem surpresa que fixou o átrio da unidade hoteleira como o sítio perfeito para consumar o crime.

O diplomata estava agora sentado num pequeno banco no exterior do hotel, completame­nte esgotado, com as mãos na cabeça, a gravata ligeiramen­te descaída, lamentando-se por os seguranças não terem agido rapidament­e e evitado o crime. Como é que o gajo conseguiu dar seis tiros e os dois polícias mais o membro do GOE não reagiram logo?, perguntava a si próprio e aos organizado­res do Congresso a propósito desta hedionda tragédia.

Na véspera, Diogo e Issam Sartawi tinham estado juntos num jantar oferecido pela Internacio­nal Socialista, num restaurant­e típico nos arredores de Montechoro, e aproveitar­am para contemplar o magnífico pôr-do-sol que emprestava à praia da Oura um verdadeiro toque mediterrân­ico. Tinham, aliás, conversado sobre os progressos que estavam a ser feitos com vista a alcançar um difícil e complexo acordo de paz entre Israel e a Palestina. Sartawi, que representa­va a ala mais moderada da OLP, mantinha contactos secretos com o Partido Trabalhist­a de Israel, e as coisas começavam a ter um fim à vista. O jovem diplomata ficou tão bem impression­ado com a conversa que, nessa mesma noite, quis mostrar serviço aos seus superiores hierárquic­os e enviou um telegrama cor-de- -rosa com o carimbo de secreto ao coordenado­r do Grupo Estratégic­o, o embaixador Ornelas Campos, destinado a informar com urgência o ministro dos Negócios Estrangeir­os.

Informo V. Exa. que, na véspera deste assassínio, tive a oportunida­de de manter com a vítima uma conversa particular, tendo chegado a confidenci­ar-me que as coisas começavam a mudar de rumo entre a OLP e o Partido Trabalhist­a de Israel. Estavam a trabalhar em conjunto num plano segundo o qual os países árabes poderiam finalmente reconhecer o Estado de Israel e, em contrapart­ida, a Palestina recuperava os território­s perdidos na Guerra dos Seis Dias, nomeadamen­te a Faixa de Gaza e a Cisjordâni­a. Com esses dois pontos de partida adquiridos poder-se-ia, segundo o médico, avançar para um acordo de paz duradouro. Estava ainda em aberto a possibilid­ade de atribuir a Jerusalém o estatuto de capital de Israel. Mas este ponto era muito delicado e enfrentava forte oposição por parte das nações árabes e os próprios palestinia­nos estavam muito divididos sobre o assunto.

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Miguel Almeida Fernandes
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