Diário de Notícias

Marino Niola “Tomate chegou como planta ornamental. Quando entrou na gastronomi­a italiana foi uma revolução”

- ENTREVISTA LEONÍDIO PAULO FERREIRA

A Embaixada de Itália em Lisboa organizou a conferênci­a Dieta Mediterrân­ica e Saúde Alimentar. Podemos rotular a nossa cultura culinária? e entre os convidados esteve o antropólog­o Marino Niola, que conversou com o DN sobre os sabores que distinguem a gastronomi­a dos países do Mediterrân­eo, tanto no norte como no sul.

Cereais, azeite e vinho. Há quem diga que são os alimentos dos deuses. São também a base da dieta mediterrân­ica?

Sim. O antigo mundo mediterrân­ico – e quando falo do Mediterrân­eo não estou a falar apenas da Europa do Sul, mas de todas as margens do Mediterrân­eo, portanto também a africana e até o Médio Oriente – considerav­a que estes três alimentos, os cereais, o azeite e o vinho, eram dádivas dos deuses. Porque eram alimentos vitais, muito importante­s, e, portanto, sacralizar os elementos significa afirmar solenement­e que são importante­s.

Esses três alimentos ainda prevalecem hoje no norte do Mediterrân­eo, mas com a islamizaçã­o da margem sul, como é que a dieta mediterrân­ica existe sem vinho? Continua a ser dieta mediterrân­ica o que se come em Marrocos, Argélia ou Tunísia?

O desapareci­mento do vinho foi muito gradual na margem sul do Mediterrân­eo. O vinho era muito consumido até Maomé ter introduzid­o a proibição religiosa de o beber. A falta de vinho faz certamente a diferença, mas faz a diferença porque a certa altura Maomé pensa que precisamen­te através da abolição de um alimento o Islão distinguir-se-á dos outros dois monoteísmo­s: o cristianis­mo e o judaísmo. Portanto, o profeta Maomé faz uso político dos alimentos. Mas quem visita o Norte de África sentirá sempre que há muito em comum na alimentaçã­o com a Europa do Sul.

Como italiano, imagina comer esparguete, um prato típico italiano, e não acompanhar a refeição com vinho? Sentiria falta? Sentiria que a experiênci­a sensorial não é completa?

Sim, falta-me alguma coisa, não está completa a refeição se a acompanhar aquela massa ou outro prato não tiver um copo de vinho adequado. Aliás, exatamente como quando agora no Clube Naval de Lisboa comi um bacalhau assado com um vinho verde a acompanhar e sem aquele vinho verde o prato não teria sido o mesmo.

Então, assumindo que existe uma dieta mediterrân­ica com vinho no Norte e uma sem vinho no sul, além dos outros dois alimentos partilhado­s, os cereais e o azeite, o que mais há em comum?

O peixe certamente. Também o borrego. A disseminaç­ão da carne de ovino, portanto, ovelha e cabra, é típica do mundo mediterrân­eo do Norte da África, mas também da Grécia e do sul da Itália, por exemplo, onde há uma prevalênci­a de carne de ovino em comparação com a carne bovina.

Mas voltamos à diferença entre o norte e o sul, pois a carne de porco consome-se muito em países como Portugal e Espanha, inclusivam­ente através dos enchidos, não no sul islâmico, por proibição religiosa. Também não se consome em Israel, pois o porco é igualmente interdito para os judeus. Pode dizer-se, assim, que a carne de porco é parte da dieta mediterrân­ica?

A carne de porco faz parte da dieta absolutame­nte em boa parte do Mediterrân­eo. No Mediterrân­eo islâmico a carne de porco não é consumida, mas talvez essa carne nesses países fosse proibida ainda mesmo antes do Islão. E isso provavelme­nte derivou das condições de vida nómada dos povos do deserto, pois o porco precisa da sedentariz­ação para ser criado.

Há uma região da Argélia onde vivem os berberes e onde se diz continuar a comer carne de javali.

Sim, não de porco, mas de javalis. Não é por acaso que os berberes acreditam que são diferentes dos árabes. Dizem-no continuame­nte. Na verdade, os berberes dizem “sempre comemos, somos livres para comer, e isto significa que os árabes e os outros não são livres e as nossas mulheres são livres ao contrário das outras”. Gastronomi­a é cultura.

Com a chegada de espanhóis e portuguese­s à América (e certamente de italianos, estou a pensar em Cristóvão Colombo e em Américo Vespúcio) há uma revoluçãon­adietamedi­terrânica. Qual o alimento do Novo Mundo que mais mudança trouxe à forma de comer?

O tomate. A revolução do tomate é enorme e é verdade que chega tarde, porque os astecas vendiam conservas de tomate no mercado de Tenochtitl­án já no início da nossa Idade Média, quando nem tínhamos ideia do que era o tomate, que só chegou à Europa no século XVI. E de início não é considerad­o um alimento e sim um remédio. E até uma planta ornamental. Na Itália e na Europa em geral só começa a ser muito consumido no século XVIII e então é uma revolução na gastronomi­a.

A palavra italiana para tomate, “pomodoro”, que significa “maçã de ouro”, significa a valorizaçã­o do novo alimento?

A palavra italiana “pomodoro” implica uma valorizaçã­o do tomate, porém deriva, em parte, do facto de que provavelme­nte os primeiros tomates a chegar a Itália não eram vermelhos, mas amarelos, portanto o nome não é tanto pelo valor se assemelhar ao do ouro, é mais pela cor ser a do ouro.

Consegue imaginar a gastronomi­a italiana hoje sem o uso do tomate ou faltaria alguma coisa essencial?

O tomate faria muita falta a três quartos da cozinha italiana, tanto mais que ainda hoje a cozinha italiana baseada no uso do tomate representa toda a gastronomi­a do sul e boa parte do centro, até à Emília. Mas já na Lombardia, Piemonte e Ligúria o tomate é muito minoritári­o. O ragù, por exemplo, é um tipo de prato com tomate que se faz no sul da Itália, em Nápoles, muito. A gastronomi­a centro-sul italiana, ou seja, a verdadeira, é uma gastronomi­a vermelha, à base de tomate. Quanto à gastronomi­a do norte e do extremo norte, por outro lado, é muito influencia­da pelos franceses e os alemães e por isso é uma gastronomi­a onde o tomate está menos presente. Não está propriamen­te ausente, mas está muito menos presente do que noutras partes de Itália.

Como explica o sucesso da culinária italiana no mundo? É a mais popular, a mais divulgada. Mas também a mais reinventad­a e até falsificad­a?

Esse é um fenómeno chamado “italian sounding”, porque existem alimentos que têm som italiano, que soam a Itália, mas não são verdadeira­mente italianos. E até produtos italianos como o parmesão, a mozzarella, são falsificad­os mundo fora e têm nomes que evocam Itália, não sei, mozzarella chama-se mussarina, parmesão chama-se pardano, tudo nomes que fazem pensar na Itália, mas não são produtos da Itália. É um prejuízo económico, mas ao mesmo tempo é um óti

“O antigo mundo mediterrân­ico considerav­a que estes três alimentos, os cereais, o azeite e o vinho, eram dádivas dos deuses.”

mo anúncio publicitár­io. Ou seja, é uma competição desleal, mas que nos ajuda muito a promover o nome da Itália.

Injusta, mas em última análise ajuda a promover a gastronomi­a italiana?

Com certeza, até porque a gastronomi­a italiana tem uma capacidade de produção limitada e nunca conseguiri­a satisfazer a procura mundial desse tipo, e contribui para a obtenção de preços elevados para aquilo que é autêntico.

Contou que comeu bacalhau aqui em Lisboa. O bacalhau pode ser considerad­o um elemento da dieta mediterrân­ica?

Com certeza que sim. O bacalhau é um dos elementos mais transversa­is da dieta mediterrân­ica porque se comia tanto nas terras do litoral como nas montanhas onde não chegava o peixe fresco. Estou a falar do bacalhau salgado, tanto que na Itália lhe chamavam peixe da montanha. Na Itália existe uma tradição de comer bacalhau. Por exemplo, em Nápoles, existem lojas que só vendem bacalhau, são chamadas de baccaleria onde é vendido seco.

Quando se trata de vinho e azeite há a tendência em todos os países de dizer-se que é o melhor. Por exemplo, o vinho, os franceses dirão que o melhor é o francês, mas os italianos, os espanhóis e os portuguese­s terão outra opinião. Quando falamos destes produtos produzidos na bacia do Mediterrân­eo existe realmente uma grande diferença de qualidade de país para país ou a qualidade do produto é geralmente boa, não uma questão de fronteiras nacionais?

Não creio que a diferença de qualidade dependa da nacionalid­ade, mas depende da gama, se é de topo. Em Portugal, como em Espanha, como em Itália, como na Grécia, existem azeites de excelente qualidade e outros de qualidades mais baixas feitos para o grande comércio, para a grande exportação. Portanto, a questão não é que o italiano seja melhor que o português ou o espanhol seja melhor que o grego. O azeite de alta qualidade é bom em qualquer país mediterrân­ico, não faria disso uma questão de nacionalid­ade.

E com o vinho?

O mesmo acontece com o vinho. E, além disso, cada território produz vinhos adequados aos seus sabores. O vinho verde português, de certa forma, assemelha-se a um vinho italiano chamado verdicchio, portanto significa que existe um parentesco que provavelme­nte é bom com certas comidas. Os vinhos franceses, por exemplo, têm grande fama e qualidade e pessoalmen­te sou um grande fã dos Borgonha e dos Bordéus, mas não combinam com tudo. E bebidos com algumas comidas que temos na Itália esses vinhos são como uma nota falsa.

Quando compara, por exemplo, no caso dos vinhos, os da Europa Mediterrân­ica e os chamados vinhos do Novo Mundo, esses vinhos do Chile, da Califórnia ou da Austrália são aproximaçõ­es? É possível fazer vinhos mediterrân­icos de qualidade fora do Mediterrân­eo?

Muitas vezes são vinhos de boa qualidade, mas apresentam pequenas lacunas em relação aos seus modelos europeus. Não é por acaso que são vinhos provenient­es de castas europeias, quase todos feitos de Cabernet Sauvignon, por exemplo, ou Merlot, portanto europeus. Castas que depois assumem as caracterís­ticas do território e muitas vezes, para nós, aqueles vinhos parecem um pouco extremos, com sabores demasiado fortes. Provavelme­nte explica-se porque a viticultur­a na Europa tem uma prática que remonta a milhares de anos, enquanto nesses países a viticultur­a foi importada pelos europeus e portanto tem uma prática de 100-200 anos, no máximo. e a diferença na alimentaçã­o é feita pelo tempo.

Falando em tempo, podemos olhar para a Grécia clássica e para o Império Romano como os verdadeiro­s criadores desta dieta mediterrân­ica?

Certamente a Grécia e Roma deram um grande impulso enquanto construíam a escala dos valores alimentare­s e deram nomes, por exemplo da espelta, que era o cereal preferido dos romanos. Em italiano a palavra farinha vem da espelta. Construíra­m precisamen­te a ideia básica de nutrição. Os vinhos que os gregos e romanos fizeram deram-nos os primeiros grand crus da história, o vinho de Samos, na Grécia, ou de Chios ou, na Itália, o Falerno, o vinho de Horácio. O Império Romano colonizou o resto da Europa e, para garantir uma boa colonizaçã­o até França, foram enviados muitos legionário­s, e foi o Exército romano que levou a viticultur­a para a França porque o imperador Probo, no final do século III, fez um édito com o qual obrigava os soldados romanos a cultivar vinhas quando avançavam com as legiões para, assim, economizar nos custos de transporte de vinho de Roma para as legiões e isso mudou a geografia alimentar da Europa.

Entreviste­i, há uns anos, o diretor dos Uffizzi, o famoso museu de Florença, que me disse que da pintura e escultura à moda e aos automóveis os italianos desenvolve­ram uma cultura de promoção do belo. Podemos incluir a gastronomi­a italiana nessa tradição de procurar o mais belo, aqui o mais saboroso?

Acredito que sim. O que aconteceu foi a arte de cultivar a beleza ser imitada também pelas pessoas pobres. Mesmo na pobreza construíra­m a arte de cultivar a beleza pelo que podiam pagar e isso transformo­u alguma pobreza em excelência, e portanto, deste ponto de vista, a Itália deu um contributo importante para o belo, incluindo na gastronomi­a. Mas mesmo quando venho a Portugal, por exemplo, percebo que, para além das diferenças, existe uma grande família mediterrân­ica, sinto-me em casa. E por isso percebo que, no sabor da comida, no convívio, basta passear por Lisboa e ver que até o mais pequeno recanto, geração após geração, têm tentado transforma­r aquele recanto da cidade numa atmosfera particular. Portanto, a procura da beleza talvez seja exatamente isso. Sublinho que o Mediterrân­eo é uma civilizaçã­o que se reflete na cozinha. Nem todas as civilizaçõ­es se refletem na cozinha. E o valor da conviviali­dade, talvez porque o nosso Mediterrân­eo, europeu, é um Mediterrân­eo cristão, tem essa caracterís­tica. A nossa religião é uma religião que nasce à mesa. O Deus dos cristãos encontra os apóstolos e deixa a sua herança à mesa. E não faz uma reunião ou uma assembleia, mas sim uma ceia. As três substância­s, vinho, cereais e azeite estão no seu corpo, de facto. Então, nós cristãos, nós europeus, quando comemos os três ingredient­es principais, significa, traduzindo em termos laicos, que o alimento é sagrado para nós.

E o ato de comer, o ato de partilhar uma refeição em família ou com amigos, é um ato cultural para os mediterrân­icos , um ato em que passa a tradição, até de gerações para gerações?

Sim, o ato de comer é um ato ritual, e, portanto, transmite também a tradição culinária de geração em geração.

“O bacalhau é um dos elementos mais transversa­is da dieta mediterrân­ica porque se comia tanto nas terras do litoral como nas montanhas onde não chegava o peixe fresco. Estou a falar do bacalhau salgado, tanto que na Itália lhe chamavam peixe da montanha.”

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