Diário de Notícias

Isto de invadir a Rússia não é para todos

- Leonídio Paulo Ferreira Diretor adjunto do Diário de Notícias

ARússia sofreu duas famosas invasões ao longo da história: a dos Exércitos de Napoleão no início do século XIX e a dos Exércitos de Hitler em meados do século XX. Se quisermos acrescenta­r uma terceira grande invasão será a das hordas mongóis, com a ironia, dado os tempos presentes, de tal ter significad­o há 800 anos o fim da Rus de Kiev, considerad­o pelos historiado­res o primeiro Estado russo.

É absurdo comparar a invasão pelas tropas ucranianas da região fronteiriç­a de Kursk, a 6 de agosto, com qualquer destas grandes invasões (a francesa e a alemã foram derrotadas, a mongol também, apesar de ter demorado dois séculos o renascer de um Estado russo, com Ivan, o Grande). Como também é absurdo comparar os 400 (ou serão 800?) km2 de terras russas agora ocupados pelos soldados ucranianos com os cerca de 20% de território ucraniano sob controlo russo.

O que, porém, não é absurdo é reconhecer que aquela que foi a primeira invasão de território russo depois da Segunda Guerra Mundial surpreende­u totalmente Moscovo, assim como os Aliados de Kiev. E mostra, uma vez mais, a determinaç­ão de Volodymyr Zelensky em desafiar Vladimir Putin, agora que muitos preveem que, a breve prazo, ucranianos e russos terão de sentar-se à mesa para negociar uma saída para o conflito que dura desde 2022 (2014, se incluirmos a anexação da Crimeia e o início do separatism­o dos russófonos no Donbass).

A Ucrânia diz que as suas forças continuam a avançar na Rússia, com dezenas de localidade­s já sob seu controlo. A Rússia admitiu que 28 povoações foram tomadas (os ucranianos dizem 74), o que mostra a situação difícil em que está. Também há 110 mil civis russos retirados da zona invadida, um número, só para efeitos de comparação, superior ao de israelitas obrigados a fugir da zona fronteiriç­a com o Líbano por causa dos ataques do Hezbollah. E depois do governador de Kursk, foi a vez do governador da região de Belgorod, também vizinha da Ucrânia, declarar Situação de Emergência.

Nada do que aconteceu desde dia 6 altera o essencial da situação militar na Ucrânia, onde os russos têm, nos últimos meses, avançado regularmen­te ao longo de uma linha da frente que se espalha por centenas de quilómetro­s. A Rússia continua militarmen­te muito mais forte do que a Ucrânia, e esta depende do apoio ocidental para manter a sua capacidade de resistênci­a. Este apoio tem chegado – e houve material militar europeu e americano usado na ofensiva na região de Kursk –, mas não na quantidade e com a qualidade (tecnológic­a) exigidas por Kiev, e pode até sofrer uma forte quebra se Donald Trump for reeleito presidente dos Estados Unidos em novembro. Há ainda as dificuldad­es de recrutamen­to de novos soldados ucranianos, essencial para o prosseguim­ento do esforço de guerra, pois as baixas têm sido pesadas, dada a força da artilharia russa.

Contudo, têm sido dias em que Putin foi desafiado na sua imagem de garante da segurança dos russos, e isso é um elemento novo, que gera incógnitas. Não sabemos como vai reagir Moscovo ao ataque, nem se tem condições imediatas para expulsar facilmente os invasores. Mas, e essa é a outra grande incógnita destes dias, também não sabemos o que pretende Kiev.

A forma eficiente e secreta como a ofensiva na Rússia foi organizada mostra chefias militares competente­s, e isso é importante para manter o moral das tropas e da população em geral. Mas quererá Zelensky consolidar a ocupação de uma região russa para ter força negocial com a Rússia em caso de as conversaçõ­es de paz virem mesmo a acontecer? Ou não tarda muito dará ordem de retirada da Rússia, salvaguard­ando soldados experiente­s que fazem muita falta para conter o inimigo no Donbass e evitando assim o risco de uma resposta fulminante russa em Kursk ofuscar o sucesso inicial?

Para quem governa em Kiev, a situação continua difícil e isso é inegável. Mas sim, Zelensky e os generais ucranianos mostraram com esta ofensiva no terreno serem capazes de surpreende­r tanto os russos como os ocidentais. Talvez tenham conseguido, assim, além da dor de cabeça que infligiram a Putin, ter evitado, para já, o esquecimen­to gradual por parte de uma opinião pública europeia e americana que começa a cansar-se desta guerra. Afinal, pensará quem hesita em continuar a apoiar a Ucrânia: isto de invadir a Rússia, mesmo em pequena escala, não é para todos. É um grande atreviment­o!

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