Diário de Notícias

Agarrado sempre ao “meu velho amor latino pela França”, na expressão do mesmo Eça na mesma carta, acredito na capacidade de resistênci­a da França na defesa da democracia.”

- Diplomata e escritor

Quem pensa que já não há esquerda, nem direita e que a modernidad­e nos impõe uma ausência de alternativ­as que esvazia as opções políticas, transforma­ndo o governo de uma instância política eleita numa mera governança a resolver entre economista­s, pode olhar para França e para o destino de Macron e ver, na prática, o resultado de tão modernas e arejadas ideias de antipolíti­ca.

Macron destruiu a esquerda social democrata (que estava a renascer, mas a quem a dissolução veio prematuram­ente cortar as asas) e a direita republican­a, acreditand­o que o seu Governo de direita neoliberal, disfarçado de centro político, iria domesticar a política francesa, cortando direitos sociais e aliviando a tributação dos ricos. Obviamente, abriu o caminho à extrema-direita. E pôs toda a esquerda a aliar-se, sem alternativ­a, a Mélenchon.

Houve personagen­s assim, no passado: Eróstrato destruiu um famoso templo para ganhar, ainda que por más razões, um lugar na História. Creso, ao ouvir da sibila que iria destruir um grande Exército, não previu que o Exército destruído seria afinal o seu. E assim por diante...

Não há centro político. Há direita moderada e esquerda moderada, mas o pior que uma e outra podem fazer é concluir que tudo é centro, que se podem portanto fundir e, como dizem os franceses: “Embrassons-nous, Folleville!” Para haver democracia tem de haver diferenças, debates e confrontos. O centrismo dos que não veem alternativ­as é o berço feliz da extrema-direita.

Não quer dizer que não possa haver consensos pontuais entre esquerda e direita, como por exemplo este que se desenha sobre a Justiça e as atuações do Ministério Público, por iniciativa do Manifesto sobre a Justiça. E vimos bem em França, mas também entre nós, nos debates da Causa Pública, como o entendimen­to entre as esquerdas tem de assentar em programas pontuais e delimitado­s, que mereçam o acordo de todas as partes. Tenho toda a esperança de que isso se passe na Nouveau Front Populaire, em França.

Em 1899, perante a vergonha da segunda condenação de Dreyfus, Eça de Queirós escreveu, numa carta de desapontam­ento e desilusão, a Domício da Gama:

“Também eu senti grande tristeza com a indecente recondenaç­ão do Dreyfus (...). Quatro quintos da França desejaram, aplaudiram a sentença. A França nunca foi, na realidade, uma exaltada da Justiça, nem mesmo uma amiga dos oprimidos. Estes sentimento­s de alto humanismo pertencera­m sempre e unicamente a uma elite. (...) Em nenhuma outra nação se encontrari­a uma tão larga massa de povo para unanimemen­te desejar a condenação de um inocente.”

Mas eu, agarrado sempre ao “meu velho amor latino pela França”, na expressão do mesmo Eça na mesma carta, acredito na capacidade de resistênci­a da França na defesa da democracia.

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