O polícia que “não fez mal a Cláudia Simões” mas esmurrou dois homens porque sim
Quintino Gomes e Ricardo Botelho, já ouviu falar? Provavelmente não. Pouco se falou deles a propósito daquele que é conhecido como “o caso Cláudia Simões” – o da mulher negra de 42 anos que a 19 de janeiro de 2020, na sequência de entrar num autocarro daVimeca com a filha de oito anos e, tendo sido advertida pelo motorista para o facto de a miúda não poder viajar por não apresentar título de transporte válido, alegou que ela tinha passe (grátis na sua idade) e se esquecera dele, acabou algemada, detida e com a cara feita num bolo, tendo acusado um agente da PSP, Carlos Canha (que vídeos feitos no momento da detenção mostram a sufocá-la com um “mata-leão” e a puxar-lhe o cabelo), de a ter agredido no veículo policial a caminho da esquadra.
Nem agora parece haver muito interesse neles, Quintino e Ricardo. Malgrado a decisão desta segunda-feira do Tribunal Criminal de Sintra - a qual, além de garantir que “ninguém fez mal a Cláudia Simões”, e que as várias mazelas que apresentou na sequência da detenção foram, por ter resistido à detenção, “exclusiva culpa sua”, absolve Canha das acusações de detenção ilegal e agressão sobre ela mas o condena a três anos de prisão, com pena suspensa, por ter detido e agredido aqueles dois homens.
E no entanto, digo eu, talvez devesse haver interesse em Quintino e Ricardo. Desde logo porque os crimes pelos quais o tribunal entendeu condenar Canha - que, segundo a sua advogada, vai recorrer da condenação - terão ocorrido na sequência dos crimes pelos quais o tribunal entendeu absolvê-lo, sendo curiosamente muito semelhantes.
De acordo com o coletivo de juízes presidido pela magistrada Catarina Pires, se Canha não decidiu deter e algemar Cláudia sem motivo e se não a agrediu a caminho da esquadra, ordenou, sem motivo, a detenção e algemagem daqueles dois homens – negros como Cláudia – e agrediu-os na esquadra.
Era exatamente isso que se lia na acusação do Ministério Público, exarada a 29 de setembro de 2021, e que o tribunal terá em grande parte acolhido: “Carlos Canha ordenou ainda que os ofendidos Ricardo Botelho e Quintino Gomes fossem levados para a esquadra, algemados, sem que tivessem tido qualquer intervenção no desenrolar dos factos”; “depois, no interior da esquadra, dirigiu-se aos ofendidos – que foram algemados desde a Rua Elias Garcia [na Amadora] até à esquadra do Casal de São Brás – tendo desferido um soco na cara do ofendido Quintino Gomes (…) e dirigiu-se ao ofendido Ricardo Botelho perguntando-lhe ‘tu é que és o herói da rua, não é? E agora fala lá outra vez’”, tendo aquele “de imediato recebido um soco desferido pelo arguido Carlos Canha que o atingiu do lado esquerdo da cara. O arguido ainda lhe desferiu mais dois socos que o atingiram na cabeça e um pontapé que o atingiu nas mãos que colocou à frente da cara para se proteger.”
Por estas ações a referida acusação do Ministério Público (MP), frisando que nenhum auto de notícia ou detenção foi lavrado por Canha (ou seja quem for) em relação à condução dos dois cidadãos à esquadra, imputava ao agente os crimes de ofensa à integridade física qualificada e sequestro agravado (os mesmos, mais abuso de poder, que lhe imputava por deter, algemar e agredir Cláudia Simões, e que o tribunal agora considerou não provados).
De acordo com a informação veiculada esta segunda-feira pela Lusa – o acórdão ainda não tinha sido disponibilizado quando escrevi este texto –, Canha foi condenado por dois crimes de sequestro e dois crimes de ofensa à integridade física perpetrados sobre aqueles dois homens.
De resto, por não conhecer o acórdão e por os relatos jornalísticos do julgamento, iniciado em novembro de 2023, pouco terem dito sobre Quintino e de Ricardo, não faço ideia do que levou o coletivo de magistrados presidido pela juíza Catarina Pires a concluir que Canha cometeu aqueles crimes enquanto decidia de modo diametralmente oposto face às queixas de Cláudia Simões.
O que se sabe, segundo o Público, que seguiu o julgamento, é que Canha ali negou conhecer os dois homens ou ter tido qualquer interação com eles na esquadra, apesar de, ainda segundo o jornal, adiantar que o ‘mais novo’ (Ricardo) “estava a instigar outros cidadãos contra si”, e que dera “voz para que não se aproximasse e [soubesse] quais eram as consequências disso”. Em relação ao mais velho (Quintino), Canha afirmou que pedira aos colegas (agentes da PSP que estavam no local) “que o levassem à esquadra como testemunha”.
Por que motivo os outros agentes (quem?) entenderiam algemar os dois homens não se sabe. Aliás, aparentemente, quem os conduziu à esquadra não considerou seu dever elaborar um auto de detenção, questioná-los ou mantê-los sob sua observação – já que, de acordo com o que se deduz da convicção do tribunal, os detidos terão sido agredidos por Canha sem que na esquadra alguém tenha dado por isso.
Nada do que resulta destes factos abona a favor dos procedimentos de todos os agentes da PSP envolvidos nem da forma como a esquadra a que pertencem funciona. Mas está longe de ser a primeira vez que tem de se concluir que a lei não é respeitada (ou sequer conhecida?) por polícias. E, ainda mais grave, que os tribunais frequentemente tendem a fazer de conta que não reparam, como se não cumprir a lei fosse uma prerrogativa dos agentes da autoridade – e, lá está, dos tribunais.
Veja-se por exemplo a forma como Cláudia Simões foi, ainda segundo o Público, sistematicamente admoestada pela sua atitude, quer no confronto com Canha quer em juízo, e agora causticada na leitura da decisão, sendo acusada, diz quem assistiu, de “tentar ludibriar o tribunal”. Quando não houve notícia de que Canha tenha sido, ao longo do julgamento, tratado de igual forma, embora decorra do acórdão que o coletivo considera que ele, um polícia, mentiu em juízo e é um homem violento, que não hesita em usar o poder que lhe é conferido pela República para violar os direitos dos cidadãos. E sem que essas conclusões tenham implicado uma pena à altura da respetiva gravidade. Ou da necessidade de prevenção geral num país sistematicamente confrontado com relatórios internacionais que certifica m violações de direitos humanos pelas suas polícias.
Refira-se aliás a este respeito que sendo ouvido, num dos já citados vídeos filmados aquando da detenção de Cláudia Simões, a dizer, enquanto estava a “dominar” a detida, “esta gente não sabe as leis” e “levas um balázio”, Canha, questionado pelo tribunal sobre o objeto da ameaça, tenha garantido que não estava a falar com a detida mas com “um cidadão que se estava a insurgir contra a detenção e foi uma forma de o ‘dissuadir’”. Como se fosse menos grave, quiçá aceitável, um polícia ameaçar com um tiro da arma de serviço quem se “insurja” contra a forma como está a agir – e como se isso não fosse um claro abuso de poder.
Ilustrativo, de resto, do ambiente que se teria vivido no julgamento é o facto, contado pelo Público, de a procuradora Maria Rosário Pires, que representou o MP em tribunal, ter, nas suas alegações finais, e ao pedir a condenação de Carlos Canha pelo sequestro e agressões a Quintino Gomes e Ricardo Botelho, sublinhado que estes demonstraram “grande humildade” e “ausência de revolta”. Enquanto, ao pugnar pela absolvição do agente no que respeita aos mesmos crimes e a Cláudia Simões, a qualificou, de acordo com a mesma fonte, de “arrogante” e “exagerada”.
Como se em causa estivesse, não a avaliação do comportamento do polícia, mas a atitude dos queixosos, só merecendo crédito os “não revoltados”. Como se a revolta fosse em si um crime – mais ainda se vinda de uma mulher negra.