Diário de Notícias

A Lisboa que desaparece

- Pedro Sequeira Editor Executivo do Diário de Notícias

Não nasci nem estudei ou vivi em Lisboa. Mas a cidade nunca me foi um corpo estranho. Bem pelo contrário. Fosse para fazer uma compra mais específica, para tratar de algum documento ou apenas por lazer, a capital esteve sempre à distância de uma curta travessia do Tejo de barco (em criança não tão curta como atualmente, pois a viagem durava uma hora) ou de carro (esta bastante mais facilitada desde 1998, com a inauguraçã­o da Ponte Vasco da Gama). Lisboa é também a cidade onde desenvolvo a minha atividade profission­al, já lá vão 25 anos, tendo passado por diversos lugares, desde o Bairro Alto às Torres de Lisboa, Marquês de Pombal ou zona do Saldanha. Estou longe de poder dizer que a conheço como as palmas das minhas mãos, mas sei navegar por ela e tenho pontos de referência, sobretudo memórias, que me permitem perceber a sua transforma­ção. Ainda assim, a forma como esta acelerou nos últimos anos não deixa de me apanhar despreveni­do.

Há uns dias, na companhia da minha filha, e sem qualquer plano prévio, dei por mim a “turistar” na Baixa. Numa das chamadas Lojas Históricas de Lisboa, quase centenária, os produtos que comerciali­za mantêm-se fiéis à tradição e à qualidade que sempre lhes reconheci e que me faz desviar de rota só para lá ir. O que mudou foi a clientela, agora maioritari­amente composta por estrangeir­os. Um grupo de turistas asiáticos está a ser atendido e a empregada da casa flutua facilmente entre o inglês e o francês para responder às perguntas que lhe fazem (interrogo-me se hoje, para trabalhar ao balcão numa loja em zona turística, é obrigatóri­o ser fluente em línguas...). Enquanto esperamos a nossa vez, um outro funcionári­o, português, dirige-se a nós e pede licença para passar. “Excuse me”, diz-nos, ao que respondo: “Força!” Reagiu com um sorriso e um esgar de surpresa. O sentimento é recíproco.

É evidente que não é isso que me vai afastar de um novo regresso à loja e até podia nem sequer estar agora a recordar o assunto não fosse logo a seguir ter ido a um café nas proximidad­es – igual a tantos outros que se espalham pela cidade como uma praga, ‘bonitinho’, decorado com objetos antigos e a servir refeições ligeiras – e ser cumpriment­ado com um “hello” quando me dirigi à caixa. Coincidênc­ias? Ou sinal de que hoje, cada vez mais, o verdadeiro turista na Baixa de Lisboa é o português?

No final de maio, o jornal espanhol El País publicou uma reportagem intitulada “Lisboa morre de sucesso”, onde dá conta do emagrecime­nto da população residente na capital e da avalanche turística que esta conheceu na última década e que, aos poucos, vai desvirtuan­do o carisma da cidade e a experiênci­a diferencia­dora que tem para oferecer. É um movimento que traz muita receita (não só a Lisboa, como ao país num todo), mas que, por outro lado, tem o revés de fazer aumentar o valor das rendas e de diminuir o número de residência­s disponívei­s, com a deslocação de centenas de imóveis para o setor do Alojamento Local. E é também um movimento que, por enquanto, não dá sinal de estar a abrandar. Ainda este mês um dos programas televisivo­s mais vistos pelos norte-americanos, o Good Morning America, da gigante emissora ABC, contou com vários diretos a partir de Portugal, promovendo de tudo um pouco: dos incontorná­veis pastéis de nata às grutas de Benagil, no Algarve. No primeiro trimestre do ano, segundo o INE, o número de hóspedes em Portugal superou os 5,55 milhões (mais 7,7% na comparação com o período homólogo) e praticamen­te 1,7 milhões ficaram alojados na região da Grande Lisboa.

O passeio desta tarde pela Baixa faz-se, sem dúvida, por ruas repletas de gente. Seguimos até à Praça do Comércio e sentamo-nos por breves momentos junto ao rio. Olho o Tejo e vejo barcos de todas as cores, de tradiciona­is fragatas que ganharam nova vida a outros mais modernos, carregados de turistas, quando antigament­e eram sobretudo os cacilheiro­s e os ferrys para a Margem Sul que marcavam a paisagem, transporta­ndo milhares de passageiro­s que trabalhava­m na capital. No Cais das Colunas, um casal de idosos desce de mão dada até uma pequena língua de areia e molha os pés descalços na água do Tejo. O momento até podia ser comovente, mas não deixo de reparar que cada onda do rio traz consigo centenas de beatas de cigarros, alguns copos de plástico e outro tipo de sujidade. Ainda assim, parecem, de facto, satisfeito­s por estar ali, dando razão a uma frase da reportagem do El País: “Sem se dar muita conta, Lisboa entrou no clube das cidades carismátic­as que só fazem felizes os visitantes.”

O dia não terminaria sem mais uma pequena desilusão. Num quiosque da Baixa procurámos os poucos autocolant­es que nos faltavam para completar a coleção do Euro 2024. Enquanto dizíamos, um a um, os números da nossa lista, íamos recebendo, do dono do quiosque, vários avisos do género “ui, esse é muito complicado” ou “isto não vai ficar barato”. No final, tínhamos 14 dos que precisávam­os e pedimos o preço: “100 euros”. Engoli em seco. A justificaç­ão era que alguns dos que queria eram “cromos dourados” [especiais] e que não os podia vender por menos de 20 euros cada um. Agradeci, pedi desculpa pelo tempo que tomei e, como é óbvio, recusei a “oferta”. Uns metros mais ao lado funciona outro espaço de troca e venda destes autocolant­es. Para não dar o tempo por perdido, lá fomos tentar a nossa sorte, e, para meu espanto, os “cromos dourados” que ali ao lado custavam 20 euros aqui eram vendidos por três... Lamentavel­mente, o jeitinho português de tentar lucro fácil vai resistindo neste canto da cidade. O mais estranho é ter a sensação de que ainda vou sentir a falta dele. No dia em que a gentrifica­ção em curso transforma­r este quiosque de jornais em mais um ponto de venda de ímanes para o frigorífic­o, desses que proliferam como cogumelos na Baixa desta Lisboa que se vai apagando aos poucos.

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