Sobre o Manifesto pela Reforma da Justiça. Não sou acéfala, nem manipulável
Antes de mais nada uma declaração de interesses. Sou signatária do Manifesto dos 50 por uma Reforma da Justiça. Faço parte dos + 50 que se juntaram aos primeiros. Dito isto posso desde já confirmar que, tal como assegura o signatário David Justino na entrevista DN/TSF que publicamos nesta edição, não temos um pensamento único sobre todos os temas levantados por este crescente “sobressalto cívico”. Somos um conjunto de pessoas dos mais variados setores de atividade profissional – entre outros, jornalistas, comentadores, músicos, artistas plásticos, juristas, estudantes, advogados, ex-ministros, académicos – e políticos – há personalidades do PSD, CDS, PS, independentes e até temos o António Garcia Pereira, que foi dirigente do MRPP.
Falamos todos abertamente (temos um grupo no WhatsApp), damos sugestões de abordagem de temas, e alguns vão pondo
“água na fervura” face ao que consideram excessos de outros, respeitando-nos sempre mutuamente. Todos sabem, por exemplo, na parte que me diz respeito, que não contam comigo para proposta de agravamento das penas para o crime de violação do segredo de Justiça ou de interceções telefónicas a jornalistas.
Por isso, lamento que haja quem escreva que somos um bando de acéfalos controlados seja por Rui Rio, seja por Augusto Santos Silva ou até, como ainda esta semana escrevia o diretor-geral adjunto do Correio da Manhã, pelo advogado Daniel Proença de Carvalho. O qual, afirmava, “dirige” a “agenda” do grupo que quer “nomear um fiel para procurador-geral da República, controlar a oportunidade das investigações e o tipo de meios a utilizar”. Ora, quem olhar com atenção para a lista dos subscritores terá dificuldade, no meu entender, em identificar um que seja “pau mandado”. Muito menos em relação a uma matéria tão gigante do ponto de vista do Estado de Direito e da nossa Democracia, como é a Justiça. No limite, ninguém é obrigado a estar lá se sentir que está a ser manipulado e usado.
Esse é um dos motivos pelo qual, numa exceção à regra que tenho mantido ao longo da minha vida de mais de 30 anos de jornalismo, decidi assinar este Manifesto. Não porque concorde com todos os adjetivos usados no mesmo, nem sequer porque acredite que há interferência objetiva da justiça na política – até porque nunca se provou e nestas matérias perceções não chegam - pelo menos generalizada.
Aliás, no poder político, os Governos e o Parlamento é que têm interferência mo modo como o sistema judicial funciona, desde logo a que leis deve obedecer. E na sua eficácia e eficiência, quando decidem orçamentos e recursos a atribuir. Veja-se como o anterior Executivo reforçou a Polícia Judiciária e com isso elevou a capacidade de produzir investigações céleres e de qualidade.
A oportunidade para o Manifesto nasceu, de facto, de dois acontecimentos, duas operações no âmbito de investigações criminais, que levaram à queda de dois Governos, o da República e o da Região Autónoma da Madeira, com as subsequentes decisões de tribunais a contestar os fundamentos de alguns dos mais graves crimes imputados. Qualquer cidadão (excetuando talvez os que conhecem a fundo os meandros do funcionamento destes procedimentos) fica perplexo, apesar de ser a dita separação de poderes, constitucionalmente consagrada, a funcionar.
Mas trata-se de muito mais do que estes casos. É sentir que, de facto a separação de poderes é sagrada e que não pode haver instituições que não possam ser escrutinadas numa democracia. A atual procuradora-geral da República, Lucília Gago, proposta pelo ex-primeiro-ministro António Costa e nomeada pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, contribuiu em grande medida para a onda de críticas e para o dito “sobressalto”. Para o evitar bastaria cumprir as suas funções hierárquicas na plenitude.
Por exemplo, como é escrito no Manifesto, reconduzindo “o Ministério Público ao modelo constitucional do seu funcionamento hierárquico, tendo como vértice o/a procurador/a-geral da República, responsabilizando cada nível da hierarquia pela legalidade e qualidade do trabalho profissional das equipas”; reforçando “os meios de avaliação efetiva e independente no seio do sistema judiciário”; implementando “mecanismos de escrutínio democrático externo, designadamente através de relatórios periódicos a apresentar à Assembleia da República pelos órgãos de Governo institucional das diferentes magistraturas e sua apreciação nas comissões parlamentares competentes”; e fazendo “cumprir efetivamente o segredo de justiça, constitucionalmente protegido, aplicando a lei penal e as normas disciplinares contra a sua violação”.
O que se pede, na verdade, foi bem resumido pela ministra da Justiça, Rita Júdice, na entrevista que deu ao jornalista Luís Rosa, do Observador: “Precisamos de um novo procurador-geral que ponha ordem na casa (…) Tem de existir hierarquia no Ministério Público. Não é um corpo que anda à solta.” O mandato de Lucília Gago termina em outubro e a contagem decrescente já começou.