Rumo à Polinésia a bordo da jangada Kon-Tiki
Na década de 1940, uma expedição norueguesa demandou as águas do Pacífico. A Expedição Kon-Tiki, liderada por um sonhador geógrafo, pretendia provar a teoria de milenares viagens oceânicas rumo à Polinésia, a partir da América do Sul. A demanda contou com
Nos 111 minutos de duração do filme Um Americano em Paris, os atores Gene Kelly e Leslie Caron entregam-se com energia à película estreada em 1951, um musical com os acordes saídos do génio do compositor George Gershwin. O filme, realizado porVincente Minnelli, oferece-nos uma história de amor e intriga ambientada na capital francesa. O filme conquistou plateias dentro e fora dos Estados Unidos. Em 1952, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas entregava nas mãos da equipa e atores de Um Americano em Paris um total de seis óscares, entre eles o de melhor filme. Na mesma cerimónia, a 24.ª da entrega dos Óscares, subiu ao palco um excêntrico norueguês. Não obstante longe da sua terra natal, Thor Heyerdahl não era um estranho para o público norte-americano. Cinco anos antes, o aventureiro nascido em 1914, protagonizara uma história com escala noticiosa global. Heyerdahl e cinco companheiros de viagem tentaram recriar uma epopeia antiga, aquela que supostamente levara à colonização da região Polinésia por via marítima, fruto da travessia oceânica de populações da América do Sul. Hoje – e também na época – esta é uma hipótese refutada com base científica. Thor Heyerdahl não estava convencido desse facto quando, em Los Angeles, acolheu nas mãos a estatueta dourada. Kon-Tiki, um filme de 77 minutos, arrecadou em 1952 o óscar de melhor documentário de longa-metragem. Heyerdahl realizara e produzira dois anos antes a película em língua norueguesa. Também nela contracenara. O norueguês que em criança sonhava com explorações transatlânticas, depois estudara zoologia e geografia, recriava para a Sétima Arte a aventura que vivera ao longo de 111 dias nos mares turquesa do Pacífico Sul. O filme Kon-Tiki sucedia ao livro de 1948, publicado em diversas línguas, The Kon-Tiki Expedition: By Raft Across the South Seas (A Expedição Kon-Tiki: De Jangada pelos Mares do Sul). A Expedição Kon-Tiki, que também apadrinhou a jangada que a empreendeu, foi mais do que a intenção de provar uma teoria pseudocientífica. Inspirou uma geração de navegadores oceânicos de diferentes nacionalidades. Entre si, partilhavam o facto de se lançarem à sorte marítima em jangadas. Kon-Tiki deu mote a livros de diferentes géneros, documentários para televisão e cinema, A Expedição Kon-Tiki: De Jangada pelos Mares do Sul anima um museu situado em Oslo, capital norueguesa. Ali descansa a tosca embarcação que, a 28 de abril de 1947, se fez ao mar para um périplo de 6.900 Km entre a costa do Peru, na América do Sul e um recife remoto nas proximidades do atol de Raroia, na Polinésia Francesa.
Financiada por empréstimos privados e com recurso a equipamentos doados pelo exército dos Estados Unidos, a Expedição Kon-Tiki alicerçava o sucesso da empresa na jangada construída em madeira balsa. A embarcação foi construída no Peru de acordo com ilustrações dos conquistadores espanhóis.
Thor Heyerdahl e a sua equipa procuravam, tanto quanto possível, recriar as condições exatas da viagem milenar. O explorador tentava provar que uma tecnologia arcaica, como a que teria sido usada pelas populações pré-colombianas, permitiria longas travessias oceânicas. A expedição concedia algumas benesses ao presente. Sobre os nove metros de troncos de balsa, irmanados com cordas de cânhamo, viajava uma estação de radioamador, uma bateria e gerador que lhe davam suporte. Nas semanas de aventura, o rádio emitiria para estações em terra, nos Estados Unidos, Canadá e países sul-americanos. Sobre as águas do Pacífico erguia-se um mastro de nove metros de altura de madeira de mangue e uma pequena cabana de bambu. Tudo o mais dependia do engenho e conhecimento de Erik Hesselberg, navegador e artista, Bengt Danielsson, sociólogo interessado em migrações humanas, Knut Haugland e Torstein Raaby, especialistas de rádio e Herman Watzinger, engenheiro especialista em medições técnicas. Nos mais de cem dias que durou a expedição, os seis homens contaram com mil litros de água, cocos, batata-doce, frutas e raízes variadas e com a generosidade do oceano. Peixes-voadores, atuns e tubarões, entre outros, serviram a dieta regrada da tripulação.
A 28 de abril de 1947, um arrastão dirigiu a jangada Kon-Tiki até a 80
Km ao largo do litoral do Peru. Havia que evitar o tráfego costeiro. Nas semanas que se seguiram a viagem prosseguiu sem sobressaltos. A 2 de julho, Heyerdahl reportaria no diário de bordo – e mais tarde no livro que escreveu – o episódio das Três Irmãs. Um trio de ondas que fez perigar o bom sucesso da expedição. “Durante um turno noturno, com mar calmo, surgiu uma onda enorme, anormal na sua dimensão, seguida de mais duas ondas. A jangada foi sacudida para cima e para baixo. Ficou coberta de água”. Um percalço numa viagem que prosseguia serena. A 30 de julho, a expedição aportou ao atol de Puka-Puka, nas Ilhas Cook; a 4 de agosto avistou a ilha de Angatau. A má sorte chegaria no dia 7 de agosto. Um minúsculo recife no atol de Raroia ditaria o fim da ambição da Expedição Kon-Tiki. Encalhada, inoperacional, a jangada reteria a tripulação por vários dias. Seria resgatada por uma população de uma ilha próxima. De Raroia, a reboque de uma escuna francesa, Kon-Tiki chegaria ao Taiti sem glória.
Para Thor Heyerdahl e a sua tripulação ficaria uma história para contar com contornos de epopeia marítima. Os pressupostos da expedição, controversa, não ganharam o apoio da comunidade científica. Thor acreditava que os habitantes originais da Ilha de Páscoa eram uma raça de homens de barba branca que, alegava, partira do Peru. Afirmava Heyerdahl que esta população era originária do Médio Oriente e que já havia cruzado o Atlântico rumo a novos horizontes, nas américas. Atualmente, grande parte das evidências arqueológicas, linguísticas, culturais e genéticas apoiam a origem ocidental das populações da Polinésia, provenientes do Sudeste Asiático.
Para Thor Heyerdahl, o oceano continuaria a ser um palco até à data da sua morte, em 2002. Em 1969 e 1970, construiu as embarcações de junco Ra I e Ra II, respetivamente, para se lançar da costa oeste de África rumo a Barbados, nas Caraíbas. Em terra, o explorador lançou-se em 1981, 1994, 1999 e em 2000 nas planícies do Azerbaijão, onde, acreditava haviam vivido os ancestrais dos noruegueses. Em 2012, Kon-Tiki, um filme norueguês, filmado em Malta, foi indicado ao Óscar de melhor filme estrangeiro. Não ganhou a estatueta. Parte da magia de Kon-Tiki perdera-se na década de 1950.
O Instituto para a Economia e a Paz divulga hoje o seu Índice Global da Paz, que revela um cenário internacional cheios de perigos, muito por culpa das guerras na Ucrânia e na Faixa de Gaza, mas também de uma variedade de conflitos espalhados um pouco por todo o mundo. A Islândia continua a ser o país mais pacífico, com Portugal a manter a sétima posição, sendo o quinto melhor entre os europeus. O Iémen substituiu neste relatório o Afeganistão no fundo da tabela.
Desde o final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, que não havia tantos conflitos (56), nem tantos países envolvidos em conflitos para além das suas fronteiras (92), conclui o relatório de 2024 do Índice Global de Paz (IGP), também conhecido como Global Peace Index, que é divulgado esta terça-feira, e relativo à situação geopolítica no ano passado.
“O mundo está num ponto de inflexão e investir na paz é mais necessário do que nunca. O conflito está no nível mais alto desde o final da Segunda Guerra Mundial, com 56 conflitos a ocorrerem em todo o mundo. Temos notado nos últimos anos que os pequenos conflitos têm tendência a internacionalizar-se, com a intervenção de atores regionais e globais, e por isso duram mais tempo e geram mais vítimas. Hoje, 92 países estão envolvidos num conflito para além das suas fronteiras e esse é o número mais elevado registado desde o início do Índice Global de Paz. Esta evolução gerou 162 000 mortes em combate no ano passado, mais de 75% delas na Ucrânia ou em Gaza”, explica Serge Stroobants, diretor para a Europa e o Médio Oriente e Norte de África do Instituto para a Economia e a Paz, um think tank internacional com sede na Austrália e responsável pelo IGP.
Acrescenta ainda o belga Stroobants que “a natureza da guerra evoluiu e os conflitos estão a torcinco
“Os números e tendências apresentados no Global Peace Index 2024 mostram como o contexto geopolítico é preocupante, com um aumento das ameaças externas e internas. Só é possível Portugal manter-se como um dos países mais seguros do mundo, e entre os cinco mais seguros da Europa, com uma aposta contínua em paz e resiliência...” Filipe Domingues Representante em Portugal do Instituto para a Economia e a Paz
nar-se cada vez mais insolúveis. Os investimentos nas forças armadas estão a aumentar rapidamente e esta tendência irá acelerar nos próximos meses e anos. Esta é uma mudança de tendência após mais de uma década de diminuição dos investimentos. Em 2023, 108 países tornaram-se mais militarizados. Os exércitos modernos de hoje apresentam um nível de sofisticação mais elevado e com menos pessoas. Os investimentos são feitos principalmente em níveis mais elevados de desenvolvimento tecnológico de capacidades militares, como os drones, por exemplo, com um aumento de dez vezes na utilização desses drones e nas baixas que eles geram”.
O IGP, construído com base num complexo conjunto de critérios com valorações positivas e negativas, continua a colocar a Islândia como o país mais pacífico do mundo, seguida da Irlanda e da Áustria. Portugal manteve a sétima posição a nível global, quinta em termos europeus. “Os resultados de Portugal têm um significado especial, num ano em que os principais indicadores de paz e segurança internacional voltaram a cair. Os números e tendências apresentados no Global Peace Index 2024 mostram como o contexto geopolítico atual é, de fato, preocupante, com um aumento das ameaças externas e internas. Só é possível Portugal manter-se como um dos países mais seguros do mundo, e entre os mais seguros da Europa, com uma aposta contínua em paz e resiliência”, diz ao DN Filipe Domingues, representante em Portugal do think tank com sede em Sidney.
O país menos pacífico do mundo é agora o Iémen, que substituiu o Afeganistão. E o Médio Oriente e o Norte de África (conhecido pela sigla em inglês MENA) continua a ser a região menos pacífica, com quatro dos dez países que obtêm as piores classificações do IGP. E é palco de um dos grandes conflitos da atualidade, o que opõe em Gaza Israel ao Hamas, com o Estado Judaico a retaliar militarmente pelo massacre em outubro do ano passado de mais de mil israelitas e o sequestro de duas centenas, retaliação que já provocou cerca de 33 mil mortes, muitas delas civis palestinianos. Segundo o relatório do IGP, que vai na sua 18.ª edição, no ano passado registaram-se 162 mil mortes relacionadas com conflitos, com as guerras na Ucrânia e em Gaza a serem responsáveis por três quartos do total. As estimativas para as mortes em 2023 na Ucrânia são de 83 mil, o que significa que a Europa, apesar de ter sete países entre os dez mais pacíficos, é palco na parte leste do conflito mais mortífero do nosso tempo, resutado da invasão russa de fevereiro de 2022. No anterior relatório do IGP, o conflito mais mortífero acontecia no Corno de África, cem mil mortes em 2022, como relembrou Stroobants em entrevista no ano passado ao DN, em que título foi “o conflito que fez mais vítimas no ano
passado não foi o da Ucrânia, mas sim a guerra do Tigré, na Etiópia”.
“O mundo precisa de abordar conflitos menores e resolvê-los antes que tenham a oportunidade de se agravar. Em 2019, a Ucrânia, Gaza e a Etiópia ainda eram consideradas conflitos menores, gerando entre 25 e 1000 vítimas, hoje estes três conflitos estão a gerar a grande maioria das 162 mil vítimas de batalhas registadas no ano passado. Dos 56 conflitos em curso no mundo, 19 já duram há mais de uma década. Em conflitos como o da Ucrânia ou de Gaza, o sofrimento humano e a destruição têm de parar, o crescente impacto económico e financeiro tem de parar, é necessário desenvolver e assinar cessar-fogos duradouros e respeitados. A confiança, a segurança e o desenvolvimento precisam de ser restaurados através de mediação e negociações e a paz estrutural e sistémica precisa de ser construída. O próprio conceito de Paz Positiva do IEP explica e mede os efeitos positivos de tal abordagem, trazendo novas perspetivas para a paz nesses conflitos intratáveis”, sublinha o diretor para a Europa e MENA do IGP.
O IGP não aborda apenas conflitos clássicos. E é relevante que o relatório de 2024 aponte a América do Norte como palco da maior deterioração regional, “impulsionada pelo aumento da criminalidade violenta”. Os Estados Unidos, primeira potência militar do planeta e primeira economia mundial, surgem no IGP em 132.º E é interessante também a avaliação que é feita do impacto económico da violência, que em 2023 foi de 19,1 biliões de dólares (2380 dólares por pessoa), o equivalente a 13,5% do PIB global, o que é igual ao PIB chinês ou ao PIB somado dos 27 países da União Europeia. Ou seja, as guerras, e outro tipo de violência, causam mortes, mas também pobreza, impedindo o desenvolvimento. Hoje, destaca o IGP, 110 milhões de pessoas no mundo são refugiados ou deslocados internos.
Num contexto de degradação da paz no planeta, a mais elevada desde que o IGP surgiu em 2008, pois 97 países foram nesse sentido, há, apesar de tudo, alguns casos de progresso na tabela que mede os países mais e menos pacíficos, como são os casos de Singapura, que entrou pela primeira vez no grupo dos cinco mais, e dos Emirados Árabes Unidos, país que, apesar de ser da região MENA, subiu 31 posições, estando agora em 53.º.
Steve Killelea, o australiano presidente e fundador do Instituto para a Economia e a Paz, em jeito de síntese do relatório IGP 2024, alerta: “na última década, a tranquilidade diminuiu em nove dos dez anos. Assistimos a um número recorde de conflitos, a um aumento da militarização e a uma maior concorrência estratégica internacional. Os conflitos afetam negativamente a economia global e o risco empresarial resultante de conflitos nunca foi tão elevado, agravando as vulnerabilidades económicas globais. É imperativo que os governos e as empresas em todo o mundo intensifiquem os seus esforços para resolver os muitos conflitos menores antes que se transformem em crises maiores. Já se passaram 80 anos desde o fim da Segunda Guerra Mundial e as crises atuais sublinham a urgência dos líderes mundiais se comprometerem a investir na resolução destes conflitos.”