Diário de Notícias

As manhas que nos trouxeram aqui

- Fernanda Câncio Jornalista

Nunca, confesso, comprei a conversa, que ouvi à época de muita gente à esquerda, de que a vitória de Trump em 2016, como o Brexit no mesmo ano, se devia ao “abandono” de que um segmento da população - o mais deprimido social e economicam­ente - sentia, com justeza, ter sido alvo por parte dos partidos de centro-esquerda e de esquerda, e àquilo que se deu o nome irritantís­simo de “agenda fracturant­e”.

A ideia era de que a esquerda se desinteres­sara da “luta de classes”, de pugnar por melhor vida para esse segmento da população, e passara a militar sobretudo no antirracis­mo, nos direitos das chamadas “minorias sexuais” e nos direitos das mulheres, e os chamados “white trash”, os brancos pobres, se haviam passado, com armas e bagagens, para o outro lado.

Essa teoria aguentou-se por algum tempo, em grande parte por se fundar na análise do ocorrido nos EUA, um país no qual na verdade não existe propriamen­te “esquerda” e em relação ao qual a esquerda europeia se sentia particular­mente à vontade (até pela tradiciona­l diabolizaç­ão desse “Império do Mal”) para acusar o partido democrata de não cuidar de uma parte do seu eleitorado tradiciona­l. E por dizer também respeito ao Reino Unido, fustigado por anos e anos de governação de direita e, como o resto do mundo, pela crise económico-financeira iniciada em 2007. Tratava-se pois em ambos os casos da “revolta” dos pobres, que, frustrados e ressentido­s, seguiam o primeiro demagogo que lhes fizesse crer que em votando nele, ou no que defendia, tudo ficaria bem “de novo”.

Claro que antes disso tínhamos já o cresciment­o continuado da extrema-direita em França - mas ainda não houvera uma vitória como nos EUA e no Reino Unido, pelo que podia manter-se a teoria por mais uns tempos.

A coisa foi mudando de figura quando a onda começou a varrer toda a Europa com cada vez mais intensidad­e, e finalmente chegou como era inevitável que chegasse - a Portugal. De repente passou a ser necessário arranjar explicaçõe­s não apenas para a migração de votantes dos partidos de centro e centro-esquerda, mas também para a deserção dos partidos da auto-proclamada “esquerda verdadeira”. Partidos que, como o PCP, só a reboque se convertera­m à dita “agenda fraturante”.

Foi preciso encontrar motivos para a adesão ao discurso de alguém comoVentur­a, cuja rampa de lançamento foi, sem qualquer disfarce, a senda do ódio racial e xenófobo, alguém que nem sequer tinha um programa de defesa dos direitos dos trabalhado­res economicam­ente desfavorec­idos - pelo contrário, o Chega lançou-se com um programa liberal-tresloucad­o, em que acabava com o Estado Social (entregava as escolas aos professore­s para as gerirem e a Saúde aos privados, segundo o princípio do utilizador-pagador) e a regulação dos contratos de trabalho e de arrendamen­to, e propunha acabar com o IRS e reduzir ou mesmo suprimir as prestações para a Segurança Social. Era só a total hecatombe dos pobres e até dos“remediados”.

Foi então necessário admitir que talvez a chave da adesão a este tipo de partidos e discursos estivesse mesmo no ódio e na violência, na própria linguagem barrasca, na definição de “inimigos”, de “outros” a quem se pudesse culpar de tudo, em quem se pudessem expiar todos os males. Que talvez a chave estivesse mesmo no racismo, na xenofobia, no machismo, na rejeição daquilo que se considera “diferente” ou “inferior”, e numa ideia de perda. A perda da “segurança”, a perda do “sossego”, a perda de um sentimento de ascendente, de poder, de estatuto, perda devida a uma “desordem”, um “perigo” que é preciso combater. É, afinal, para essa perda que remete o slogan “grande outra vez”, ou “grande de novo”: porque terá havido algo que se perdeu, parte de uma identidade, de uma posição, de uma pureza, de um paraíso.

Foi preciso admitir que não somos, as pessoas, incluindo as pessoas mais económica e socialment­e desfavorec­idas, essencialm­ente “boas”. Que a história nos mostrou isso uma e outra vez, e nem há muito tempo: o espetáculo da maldade humana está em exibição non-stop em qualquer parte do mundo.

E não precisamos de pensar no Darfour ou no Iémen, na Palestina ou em Israel, na Rússia e na Ucrânia. Podemos só passar numa banca de jornais ou passear na internet e ver as capas dos tabloides; podemos só ligar a TV para um canal tabloide e apreciar como se constroem versões da realidade moldadas segundo essa ideia de que há perigos “novos” que põem em causa quem somos, o que somos, quem queremos continuar a ser - e que essa identidade, precisamen­te, se define por sermos contra esses perigos, essas novidades, essas desordens, essas “doenças”.

Uma sondagem a eleitores de extrema-direita em seis países da Europa, perguntand­o o que influencio­u mais o seu voto nestas europeias, demonstra que no topo (38% em média) está a maneira como o partido em causa “lida com os imigrantes e os requerente­s de asilo”, e que em França, Suécia, Alemanha e Espanha a percentage­m desta resposta é de 40% ou mais. A obsessão com o “perigo” da imigração é claramente o principal motor da extrema-direita na Europa. A questão é: porquê?

Há menos de duas semanas, Bárbara Reis titulava, no Público, a sua coluna sobre media “O Correio da Manhã atiça o ódio e nós assobiamos para o lado”. Para exemplific­ar esse “atiçar de ódio” falava da cobertura do ataque a imigrantes no Porto, na madrugada de 3 para 4 de maio. Nessa cobertura, o CM apresentav­a o citado ataque como uma resposta/retaliação face a alegados crimes perpetrado­s por imigrantes contra “moradores e comerciant­es”. Como de costume, nada nas peças do CM consubstan­ciava a teoria (que, de resto, normaliza o racismo, ao “justificar” o ataque a um grupo de imigrantes com alegados crimes cometidos por outros imigrantes). Dados de queixas na polícia? Aumento dos crimes reportados em função do aumento dos imigrantes na cidade? Ora, isso seria jornalismo, e não é de jornalismo que estamos a falar.

Estamos a falar de outra coisa, como um estudo citado pelo economista Luís Aguiar-Conraria num artigo de 2019, também no Público, demonstra. Nesse estudo, Tabloid Media Influence on Euroceptic­ism: Quasi-Experiment­al Evidence from England, analisa-se o efeito de um boicote regional de décadas ao tabloide The Sun (há muito um veículo de euroceptic­ismo) que teve como efeito ser essa zona foi das poucas em Inglaterra onde o Brexit perdeu. O que é o mesmo que dizer que um tablóide como o The Sun teve um papel importante – senão mesmo fundamenta­l – no sentido de voto dos britânicos.

Não temos em Portugal nenhuma maneira de comprovar o efeito que um produto como o CM, tanto na forma escrita como televisiva, teve na percepção dos seus consumidor­es e na adesão de uma parte dos portuguese­s ao populismo e à extrema-direita: não há (infelizmen­te) nenhuma região do país que tenha decidido boicotar os produtos da Cofina. Mas basta passar os olhos nos respetivos títulos e peças televisiva­s e na forma como há décadas os produtos desta empresa se esforçam por servir uma imagem de um país cravejado de crimes, inseguro, miserável e corrupto, um verdadeiro Estado falhado, para concluir sobre o efeito que necessaria­mente têm, sobretudo para quem só se “informa” naquele universo.

Podemos, claro, perguntar por que motivo produtos como os cofinescos têm tanto sucesso - teríamos talvez de concluir que de algum modo vão ao encontro de necessidad­es, ou de percepções pré-existentes. De explicaçõe­s do mundo que agradam a quem os procura e aprecia. Porque são simples e simplistas e apontam culpados que podem ser odiados, não exigindo mais de quem as recebe a não ser esse ódio, essa raiva.

Foi assim, ou foi sobretudo assim, que aqui chegámos.

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