Correio da Manha

Lógicas torcidas

- Rui Zink ruigzink@gmail.com

OCunhal é capado!”, riam ufanos os que acordaram zangados em democracia. A história é conhecida: para obrigar Álvaro Cunhal a falar, agentes da PIDE terão posto os testículos dele numa gaveta aberta e ameaçado fechá-la, a menos que ele desatasse já a denunciar camaradas. Cunhal não cedeu e eles fecharam a gaveta com toda a força… capando-o. Esta é a lenda.

Nunca percebi a inversão moral. Como podia alguém achar graça a tal crueldade e cobardia? O que levaria alguém a rir com gosto de maldade tamanha, em vez de admirar a coragem de quem mesmo perante tal ameaça não cedia?

Mais tarde, ouvi esta mesma lógica torcida da boca de um deputado brasileiro que acabou Presidente. Quando foi votar contra Dilma, declarou: “Pelo coronel Ustra, terror de Dilma!” Também aí não percebi. Qual o mérito em aterroriza­r uma mulher? Fui ler. Afinal o coronel Ustra era ainda mais choninhas que os pides. Era só o chefe da tortura, quase nem sujava as mãos, a menos que segurassem bem a presa. Mais que torcida, lógica torcionári­a.

Dilma tinha sido presa política e os assessores do senhor haviam-na torturado com choques elétricos, inclusive na vagina, parece. Tomates, vagina… não haverá aqui uma obsessão qualquer?

Agora, graças à magnífica entrevista aqui no último domingo ao

Óscar Cardoso, ex-agente da PIDE, desfruta de um luxo não permitido aos que perseguia

senhor Óscar Cardoso, ex-agente da PIDE, fiquei a perceber.

Sempre haverá quem apareça no café a gabar-se de, em matilha, “terem dado uma lição” a um desgraçado que apanharam sozinho. Não é que estas pessoas sejam más pessoas. Simplesmen­te, têm uma deficiênci­a afetiva que lhes bloqueia a empatia. Talvez um trauma de infância, ou simplesmen­te falta de inteligênc­ia. Inteligênc­ia emocional, entenda-se, da outra até a têm em barda. Não serei eu a chamar estúpido ao sr. Óscar Cardoso, até porque: a) fui ensinado a respeitar os mais velhos; b) esperto que nem um alho foi ele, pois torturou (um bocadinho) e não foi torturado. Restringiu a liberdade a outros, mas no geral a sua foi bem catita. E desfruta de um luxo não permitido aos que perseguia, o direito a dizer o que pensa, do que gosta e do que não gosta, sem receio de lhe irem bater à porta.

Imaginem agora o que, no tempo da PIDE e da ditadura brasileira, aconteceri­a a Cunhal ou a Dilma, caso dessem entrevista­s. Perdão, vou corrigir. Imaginem o que aconteceri­a aos jornalista­s que os entrevista­ssem.

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