A POTÊNCIA DO TEATRO
DENISE FRAGA COMEMORA 40 ANOS DE CARREIRA CONDUZINDO UM PÚBLICO FIEL E NUMEROSO NUMA JORNADA DE AUTOCONHECIMENTO ATRAVÉS DA ARTE
Antes de subir ao palco do Teatro Tuca na noite desta sexta-feira (26), Denise Fraga cumprirá um ritual. Enquanto estiver se arrumando no camarim, vai pensar em todas aquelas pessoas que, como ela, também estarão se trocando para sair para o espetáculo. E naquelas que já saíram porque moram mais longe. Nos que estão mais devagar e relaxados porque moram do lado e vão a pé. Para ela, não são apenas público, são centenas de pessoas carregadas de histórias que, alheias umas às outras, decidiram estar juntas naquela sala para compartilhar uma experiência. “O teatro tem o poder de nos tirar de nossa solidão e nos fazer enxergar-nos como parte de um todo. Ele nos traz a noção de pertencimento. Todos sofremos. Digo que quem sofre com arte sofre melhor, na companhia e cumplicidade dos poetas”, ela gosta de dizer.
Quando soar o terceiro sinal e entrar em cena, Denise terá muito a comemorar. Prestes a completar 60 anos de idade com a vitalidade de garota — descobriu os exercícios, que lhe conferiram uma mobilidade invejável —, a atriz estreia seu mais novo espetáculo, O que Só Sabemos Juntos, ao mesmo tempo que celebra quatro décadas de uma consistente carreira dedicada à arte dramática, sobretudo ao teatro. A peça marca ainda o reencontro profissional com Tony Ramos, sua dupla em cena, que também comemora o retorno ao tablado depois de 22 anos e seis décadas de profissão. “Era exatamente aqui que eu queria estar hoje, celebrando”, disse Ramos ao fim do ensaio geral do último domingo (21). Com ingressos esgotados até o dia 8 de junho, a peça seguirá temporada no Tuca até 30 de junho.
O sucesso é a consolidação de um projeto profissional que a atriz, produtora e cronista vem trilhando desde que escolheu se soltar das amarras de um contrato na TV para empreender seu próprio destino, investindo em espetáculos que dão voz às suas inquietações — nesse caminho, contou sempre com a parceria do marido e sócio, o diretor Luiz Villaça, e do produtor Zé Maria, terceira ponta do trio criativo que se formou com a montagem, em 2008, de A Alma Boa de Setsuan, de Bertolt Brecht. “Eu estava há sete anos afastada do palco por conta do nascimento dos meus dois filhos, que têm apenas um ano e meio de diferença. Na época eu gravava Retrato Falado (quadro do Fantástico em que dramatizava histórias reais), mas não conseguia fazer teatro. Quando o quadro acabou, procurei algo que me tocasse para voltar ao palco e encontrei esse texto”, lembra. Foi o início de uma nova fase profissional, pautada na construção de um diálogo entre atriz e público.
A primeira conversa para essa reportagem aconteceu no Tuca, antes de um ensaio de O que Só Sabemos Juntos, projeto que partiu de uma provocação do próprio Tony Ramos depois de assistir pela segunda vez a Eu de Você, último espetáculo da dupla Denise e Luiz, visto por 165 000 pessoas. Durante um jantar com os dois depois do espetáculo, o ator comentou, hesitante, o quanto tinha sido impactado pelo que viu. E confessou a intenção de fazer algo semelhante. “Sempre que penso em fazer teatro, procuro algo que me inquiete. Me senti perturbado no bom sentido, era um espetáculo que propunha uma reflexão. Pensei: adoraria experimentar isso com eles”, lembra Tony. Quase dois anos depois, recebeu a ligação do Luiz apresentando uma primeira proposta. Construída na sala de ensaio, a encenação parte de memórias pessoais dos atores e de manifestações da plateia, que vão se entrelaçando com textos e pensamentos de personalidades como o dramaturgo russo Anton Tchekhov, a ativista feminista e escritora americana bell hooks, e os escritores Fernando Pessoa e Arnaldo Antunes. Nesse jogo dinâmico, conduzido por uma banda formada por cinco mulheres, vai se construindo uma teia que envolve o público aos poucos. É impossível ficar indiferente. Em uma hora e meia, Denise e Tony dançam, cantam, discutem, enquanto o espectador, já dentro da cena, vai da gargalhada ao silêncio, do choro à placidez. Quem só vê Denise na TV, não faz ideia do poder que ela exerce ao vivo. “As pessoas confiam nela. Soube construir a carreira com um pensamento muito claro do que queria. Elas chegam na porta do teatro e dizem que vieram por ela. Sinto que ela está no auge”, afirma Luiz. Pode-se dizer que, ainda que não tenha sido fácil, ela não
precisou travar uma batalha para provar seu talento. Encontrou o sucesso cedo, mas manter-se consistente e tão relevante é seu grande mérito.
Segunda filha do casamento de uma professora e um contador, Denise nasceu e cresceu em Lins de Vasconcelos, bairro do subúrbio do Rio de Janeiro. Suas memórias de infância remetem aos dias na casa da avó, com o irmão, Ricardo, e muitos primos, enquanto a mãe trabalhava. “Uma casa de rua onde a grama cresce entre o paralelepípedo. E eu gostava de arrancar.” É a mesma vizinhança que sua família vive até hoje. “Tenho até pouca vivência do Rio de Ipanema e do Leblon, porque chego para visitá-los e vou direto para lá. Minha família mora em cinco casas numa mesma vila e lá fico, zanzando de uma para outra.” Boa aluna, do tipo cê-dê-efe, e muito tímida, seu destino é surpreendente até para ela. Inquieta, gostava de desenhar. Queria ser ilustradora. Prestou vestibular — e passou — para comunicação visual na UFRJ. Enquanto aguardava o início da aulas, acabou aceitando o convite de um amigo para acompanhá-lo num curso de teatro. Ali, a tímida Denise sem querer se encontrou. “Lembro que ficava muda, tinha vergonha de perguntar a hora para a pessoa do lado. Mas quando chamavam para fazer o exercício eu ia numa boa”, lembra. Embora tenha iniciado a faculdade, o desenho ficou para trás. Ingressou na tradicional Escola Martins Pena, onde um professor a levou para o Grupo Tapa, de onde sairia para criar o Cite Teatro ao lado de Moacir Chaves, Maria Assunção, Antônio Carnevale e Hércules Franco. Com o grupo, fez quatro peças entre 1987 e 1991.
Denise já tinha feito até novela na Globo (Bambolê, de 1987) quando foi convidada para integrar o elenco de Trair e Coçar É Só Começar, a peça brasileira mais longeva da história — ficou em cartaz 34 anos. Durante seis deles, ela foi o destaque no papel da empregada Olímpia. “Ela buscou na commedia dell’arte uma comicidade que alimentou as nove atrizes que a substituíram, numa interpretação impensada por mim. Credito ao seu impecável trabalho um dos fatores do sucesso da peça”, conta Marcos Caruso, o autor. Foi Trair e Coçar É Só Começar também que a trouxe a São Paulo: “Quando a montagem veio para cá, o Atílio (Riccó, diretor) me pediu para vir fazer. Conheci o Luiz e me apaixonei, por ele e pela cidade”, conta. E lá se vão trinta anos de casamento e parceria profissional bem-sucedidos. Os últimos seis espetáculos que fez e produziu ao lado do marido e de Zé Maria arrastaram 900 000 pessoas para as plateias de todo o país por onde passou.
Os bons ventos também sopram na direção do cinema. Para este e o próximo ano, Denise aguarda o
lançamento de quatro longas-metragens (veja quadro), filmados num intervalo de seis meses no fim de 2023, no Brasil e em Portugal. Além dos longas de ficção, vem aí um documentário que acompanha o processo de criação de Eu de Você.
Trabalho é que não tem faltado para Denise, mas, nos raros momentos de folga, ela gosta de curtir os pequenos prazeres cotidianos. Circula na maior parte do tempo pelo próprio bairro onde mora, Higienópolis, caminha pelas ruas — “Gosto da urbanidade de estar entre as pessoas. Não tenho problemas em me reconhecerem, mas também não sou o Tony Ramos né?” —, vai ao sacolão local, almoça com uma amiga e não deixa de fazer um programa que ama: ir ao cinema sozinha. “Eu adoro sair sem ter que emitir uma opinião imediatamente. Gosto de ter a chance de deixar decantar as ideias.” Quando vai mais longe, assiste aos jogos do Palmeiras, passeia pelo Sesc ou cai no samba. Sim, Denise não só é do samba como tem uma roda para chamar de sua. Nascido despretensiosamente nos bas
tidores de A Alma Boa de Setsuan, o Samba na Coxia tomou forma, cresceu, ganhou uma casa no Bixiga e se tornou um programa mensal. Mas, para ela, segue sendo um refúgio, quase um lugar secreto, onde encontra amigos para cantar e desopilar.
Em casa, anda muito feliz de ver seus dois filhos, Pedro, 26, e Nino, 25, namorando. “É muito bom ter presenças femininas numa casa onde sempre fui eu entre três homens. Eles são todos amorosos, humanistas, carinhosos, mas é sempre uma busca por se fazer entender, achar minha voz.” Ela vê, contudo, uma evolução. “Minha avó dizia que a receita para a longevidade do casamento era ouvir uma coisa e fingir que não ouvia (risos).” Fico feliz de não precisar fingir que não ouvi, posso falar que não gostei, provocar conversas, mesmo que chatas.” O bom diálogo é base do seu bom e duradouro relacionamento com Luiz. “Quem se relaciona por tanto tempo sabe que é uma construção, nem sempre um mar de rosas. Trabalhar junto, na verdade, nos ajudou, porque somos apaixonados por nós e pelos projetos, pelas causas que nos levam adiante. As pessoas têm o vício de buscar o ponto em comum, mas o importante é a complementaridade, respeito. Achamos um lugar de resistência.”
Se tem algo que a inquieta são os algoritmos. “Eu te- nho redes sociais, preciso ter. Mas essa coisa de vivermos hiperconectados está estraçalhando a atenção das pessoas. Ninguém se escuta. Eu durmo angustiada, pensando que nem que eu vivesse 100 anos daria conta de ver tudo que me sugerem.” Para seguir em frente, Denise busca conforto nas ideias de ídolos como Ailton Krenak, Dorrit Harazim, Sidarta Ribeiro, Conceição Evaristo e Mateus Aleluia. “São pessoas que dão voz à minha angústia e me ajudam a entender o mundo tão complexo em que a gente vive.” É exatamente o que Denise tem feito, pelos milhares de brasileiros que assistem ao seu trabalho. ◼