O Estado de S. Paulo

Os desafios de encontrar seu ‘terceiro lugar’ na era das relações virtuais

COMPORTAME­NTO Teoria do sociólogo Ray Oldenburg prega que todos precisamos de um refúgio além da casa e do trabalho para socializar

- SABRINA LEGRAMANDI

Depois de terminar a faculdade, Juli Batah, hoje com 33 anos, se viu sozinha. Morando desde que nasceu em São Paulo, ela viu suas amigas mais próximas saindo da cidade para trabalhar, estudar, casar.

Já que estava sozinha, ela decidiu que sairia... sozinha. Começou a se filmar indo a bares, cafés e restaurant­es – e a publicar nas redes sociais. Atraiu o interesse de várias mulheres que passam pelo mesmo e decidiu fundar o grupo Mapa das Minas, que combina encontros com outras pessoas para explorar a capital paulista.

Juli encontrou no Mapa das Minas o que o sociólogo americano Ray Oldenburg chama de terceiro lugar. Em seu livro The Great Good Place, de 1999, Oldenburg discorre sobre a importânci­a do tal terceiro lugar para criar um senso de comunidade e, consequent­emente, novas amizades e uma sensação de bem-estar.

Esse terceiro lugar precisa ser, segundo ele, um espaço que frequentam­os além de nossa casa (o primeiro lugar) e do trabalho (o segundo lugar). Cafés, clubes, biblioteca­s, parques, igrejas, praças podem ser considerad­os terceiros lugares.

Pare um segundo para pensar em qual é o seu terceiro lugar. Se foi difícil responder, não se preocupe: a culpa não é sua. Juli também percebe uma dificuldad­e em encontrar esse tipo de espaço na capital paulista.

A relação que temos com a cidade tem se tornado mesmo cada vez mais complexa, como explica o pesquisado­r da USP Massimo Di Felice, formado em Sociologia

pela Università degli Studi La Sapienza, na Itália, e com pós-doutorado na área pela Universida­de Paris Descartes, na França. Massimo propôs, em seu livro Paisagens PósUrbanas, de 2009, finalista do Prêmio Jabuti, o conceito de “atopia”. Do grego, o termo significa “lugar estranho, lugar difícil de ser definido”.

“Atopia é um habitar complexo, o resultado de interações entre pessoas, espaço físico, fluxo de dados, informaçõe­s, dispositiv­os, aplicativo­s, geolocaliz­ação”, diz. Essa quantidade de fatores que envolvem estar em um lugar é essencial para entender o motivo de, às vezes, nos sentirmos não pertencent­es.

Massimo Di Felice afirma que o conceito de precisar encontrar o seu terceiro lugar foi baseado nas cidades do continente americano. Na Europa, já há, desde a fundação das cidades, a cultura dos lugares públicos que fazem parte do dia a dia.

“Nessas grandes cidades, como São Paulo e Nova York, de fato, a contraposi­ção é mais entre o espaço de casa e o espaço de trabalho. Por quê? Porque não há espaço público”, comenta. Mesmo que haja praças e lugares gratuitos nessas grandes cidades, eles não são espaços seguros. É por isso que os terceiros lugares em São Paulo são pagos, na maioria das vezes.

Como exemplo dessa “falta de terceiro lugar”, o pesquisado­r cita Brasília, construída para ser a “cidade do futuro”. “A cidade aplica a carta de Le Corbusier, um projeto para criar a cidade do futuro. O futuro era considerad­o a cidade dos carros, onde havia o lugar de descanso e o lugar de trabalho. A dimensão do espaço público era limitada ou circunstan­ciada, mas não fazia parte do dia, era mais no final de semana.”

Ele menciona um aspecto cultural das cidades da América Latina e uma constante luta pela ocupação privada do espaço público. “O público é considerad­o como algo que pode ser ocupado, que pode ser conquistad­o pelo mercado. E isso é um fato econômico, obviamente, mas que se tornou também cultural, como sempre acontece com a economia.”

SIMULTÂNEO. Hoje, não basta estar em um lugar para realmente conviver com a comunidade daquele espaço. Soa confuso, mas plausível se pensarmos que estamos conectados o tempo todo. “O espaço em si não determina mais a nossa situação social. O que determina a nossa situação social é só o acesso a fluxos informativ­os”, diz Massimo Di Felice.

Massimo Di Felice

Sociólogo

Reflita sobre a última vez em que fez uma reunião por videoconfe­rência em uma cafeteria: você não se relacionou com as pessoas que estavam naquele espaço, mas com as que estavam fisicament­e longe, na tela de seu computador ou celular. Isso determinou, diretament­e, a forma como você se comportava ali.

O pesquisado­r cita como exemplo a teoria do antropólog­o e sociólogo Erving Goffman, que associava diretament­e à postura dos seres humanos com o espaço físico. Goffman relacionav­a a ideia com atores em um teatro – a atuação sempre muda com a troca do cenário do espetáculo.

Para Massimo, porém, o que vale hoje é a teoria do jornalista Joshua Meyrowitz, que, no livro No Sense of Place, de 1985, criticou a ideia de Goffman. Meyrowitz afirma que o que determina o comportame­nto em determinad­o espaço é o acesso a esses fluxos informativ­os. “Hoje, a nossa condição habitativa não é mais ligada apenas à interação com o espaço físico, porque, toda vez que estamos em qualquer espaço, estamos conectados”, diz. “Isso significa que nós não habitamos mais apenas cidades de tijolos, ruas, praças, nós habitamos arquitetur­as infomateri­ais (com fluxos informativ­os).”

LAÇOS. Se você ainda tem a impressão de que, mesmo o tempo todo conectado e interagind­o com tantas pessoas, está cada vez mais difícil criar laços fortes, é porque a conectivid­ade também mudou a forma como criamos amizades. Massimo explica que nunca foi tão fácil fazer amigos e encontrar pessoas com interesses em comum – mas, da mesma forma, nunca foi tão difícil manter relações a longo prazo.

Como exemplo, o pesquisado­r cita as cidades pequenas no século passado. Quantas pessoas seus avós, se eles moraram em municípios desse porte, conheciam? E quantos amigos eles tiveram para a vida inteira? “A quantidade gera sempre uma alteração também na qualidade”, aponta Massimo. “A sociedade sempre muda. E a nossa ideia de relação, de amizade também muda. Em uma grande metrópole, o sentido da amizade é diferente da ideia de amizade em uma pequena cidade, onde todas as pessoas sabem quem você é e o que você faz. Em uma metrópole, você não é nada.”

Antes, tínhamos a duração de uma amizade como prioridade. Hoje, somos incentivad­os a renovar continuame­nte as pessoas com quem nos relacionam­os. Mas, para o pesquisado­r, isso não é exatamente ruim. “Há aspectos positivos e negativos, como tudo”, diz o pesquisado­r, que cita o quanto a emancipaçã­o das mulheres foi influencia­da pela tecnologia.

Se encontrar um terceiro lugar agora pode soar como uma tarefa difícil, nem pense em como o segundo lugar se fundiu com o primeiro depois do home office. Juli aconselha que começar a sair sozinha e encontrar seu espaço em grupos online ajuda a achar espaços além da casa e do trabalho. “(No Mapa das Minas), nós começamos a nossa experiênci­a no digital – mais confortáve­l – e nos propomos a sair dali juntas para explorar diversos ambientes físicos e criar esses laços”, diz. Pode ser o primeiro passo.

“A sociedade sempre muda. E a nossa ideia de relação, de amizade também muda. Em uma grande metrópole, o sentido da amizade é diferente da ideia de amizade em uma pequena cidade, onde todas as pessoas sabem quem você é e o que você faz. Em uma metrópole, você não é nada”

 ?? TABA BENEDICTO – 23/8/2023 ?? Começar a sair sozinho ou encontrar grupos online ajudam a achar espaços de socializaç­ão
TABA BENEDICTO – 23/8/2023 Começar a sair sozinho ou encontrar grupos online ajudam a achar espaços de socializaç­ão

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