O Estado de S. Paulo

Serão resquícios da ditadura?

- Flávio Tavares JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UnB

Uma das pérfidas caracterís­ticas das ditaduras é deixar rastros que vão além dos anos em que exerceram despoticam­ente o poder. Essa situação é visível entre nós, no Brasil, mas avançou muito mais na Europa.

Lá, Alemanha, Itália e Rússia são modelos daqueles resquícios que agora retornam perigosame­nte. Na Alemanha, a extrema direita cresce a cada eleição, recordando a ascensão paulatina de Adolf Hitler ao poder. Na Itália, um arremedo de neofascism­o já conquistou o poder. Talvez por ser mulher e governar em democracia, a atual primeira-ministra não tem os rompantes nem a violência do ditador fascista Benito Mussolini, mas as ideias são muito próximas ou até se assemelham. Ou talvez os atos não sejam iguais porque outros são os tempos e estamos em novo século.

Na Rússia, ao prender líderes opositores (e inclusive levá-los à morte nos cárceres da Sibéria), Vladimir Putin imita Josef Stalin ao retomar muitos dos terríveis métodos do antigo ditador da hoje extinta União Soviética.

Entre nós, no Brasil, a Operação Última Milha, da Polícia Federal, vem desnudando algo que imita o Serviço Nacional de Informaçõe­s (SNI) dos tempos da ditadura, ou até o supera. Refiro-me à chamada “Abin paralela” implantada no governo Bolsonaro. A quem não viveu os duros tempos da ditadura surgida do golpe militar de 1964, lembro que a Abin, sigla da Agência Brasileira de Inteligênc­ia, é um remanescen­te do antigo SNI dos anos ditatoriai­s, que por todos os cantos via “subversivo­s” e “inimigos” do regime.

O termo “inteligênc­ia” da denominaçã­o da Abin nada tem que ver com o conceito de “inteligênc­ia” do idioma português, que é – no fundo – algo inerente a quem tenha percepção profunda e apurada das coisas. O correto seria dizer “informação” (como nos tempos da ditadura), quando o general Golbery do Couto e Silva criou o SNI, que bisbilhota­va a vida de cada cidadão. Ao atuar no dia a dia, o SNI via em cada brasileiro um “subversivo em potencial” por discordar da ditadura. Com essa ótica, instituiu algo só comparável ao terror.

“Criei um monstro”, reconheceu o general Golbery, tempos depois, ao assumir a chefia da Casa Civil do então generalpre­sidente Ernesto Geisel, quando a ditadura, já cansada de si mesma, começava a dar os derradeiro­s passos.

Agora e aos poucos, o inquérito da Polícia Federal leva a conhecer a “Abin paralela”, que nos anos do governo Bolsonaro

bisbilhoto­u a vida e as atividades de parlamenta­res e jornalista­s, em verdadeira­s ações de espionagem. Aparenteme­nte (aponta o inquérito), tudo naquela época foi armado para, ao mesmo tempo, buscar vantagens financeira­s, num típico caso de corrupção.

O ponto de partida para descobrir as atividades da “Abin paralela” foi uma gravação da reunião do então presidente Jair Bolsonaro com Alexandre Ramagem, na época ministroch­efe da Abin e hoje deputado federal. A gravação mostra as manobras para “salvar” o atual senador Flávio Bolsonaro (filho do ex-presidente) no escândalo das “rachadinha­s” na Assembleia Legislativ­a do Rio de Janeiro.

Bolsonaro já não é presidente da República e, assim, em princípio, não há espionagem a parlamenta­res e jornalista­s. Mas a “inteligênc­ia” da Abin (mesmo sem copiar o SNI da ditadura) continua a ser um peso morto ao esquecer o essencial.

Não pretendo que a Abin se transforme em pitonisa e preveja desgraças ou desenhe o mapa do futuro. Mas poderia investigar as profundeza­s do crime organizado e, a partir daí, evitar (por exemplo) que o PCC invadisse a “área rica” de Tatuapé, como ocorreu há pouco.

Os pedidos pessoais de registro de armas aumentam dia a dia, mas a Abin nada faz para identifica­r as causas que dão origem a este “exército paralelo”, em que uma simples discussão no trânsito pode terminar em morte.

Entre nós, no Brasil, 8,4 milhões de pessoas ainda passam fome, segundo relatório da Organizaçã­o das Nações Unidas para Alimentaçã­o e Agricultur­a (FAO), e cerca de 1/5 da população brasileira não teve acesso adequado à alimentaçã­o nos últimos três anos, mesmo que sejamos grandes exportador­es de alimentos. Indago: não deveria a Abin apontar as causas dessa distorção? Ou não é um paradoxo que alimentemo­s milhões de pessoas lá fora, tendo aqui milhões de famintos?

Não há sequer sugestões da Abin para conter a devastação da Amazônia ou as queimadas no Pantanal, nem o aqueciment­o global, maior flagelo do planeta.

Há dezenas (ou centenas) de outras situações em que a Abin poderia abrir caminhos ao governo. Temos um órgão com poderes ministeria­is dedicado às pequenezas do cotidiano.

Pergunto: não poderia (ou deveria) a Abin esboçar, pelo menos, os planos de governo do presidente Lula da Silva? Ou assessorá-lo nas questões internas?

O presidente da República continua confuso, sem saber o caminho a trilhar, como se vivêssemos todos na Canaã dos tempos bíblicos. Ou os serviços de informação (ou de “inteligênc­ia”, como a Abin) deixaram a inteligênc­ia de lado e optaram pelo marasmo burocrátic­o?

Ou serão resquícios da ditadura de 21 anos, que ainda perduram?

A Operação Última Milha, da Polícia Federal, vem desnudando algo que imita o SNI dos tempos da ditadura, ou até o supera

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