O Estado de S. Paulo

História real de um espião, ‘Cachorros’ é uma biografia da ditadura

Passos de um agente do serviço secreto e de um espião são o fio condutor no novo livro do jornalista Marcelo Godoy

- JULIA QUEIROZ

Eram meados de 2015 e Marcelo Godoy havia lançado, pouco antes, seu livro A Casa da Vovó – Uma Biografia do DOI-Codi (1969-1991), O Centro de Sequestro, Tortura e Morte da Ditadura Militar (Alameda). A obra, que viria a ganhar o Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção, era o resultado de dez anos de pesquisa.

O jornalista – colunista e repórter especial do Estadão – começava a questionar quais seriam os passos seguintes de sua carreira como pesquisado­r. “Quem gosta de pesquisar não gosta de ficar parado. Uma ideia minha era retomar o projeto inicial que ficou parado quando comecei o livro, sobre o papel das polícias militares no período e como elas chegaram a ser o que são hoje”, explica ele. Foi então que Godoy recebeu uma mensagem anônima em uma de suas redes sociais.

O mensageiro, que não se identifico­u, questionav­a a razão pela qual o autor não revelava os nomes verdadeiro­s de dois personagen­s de A Casa da Vovó – o agente Camilo e o agente Vinícius. “Dei uma resposta do ponto de vista editorial, com a justificat­iva para isso. Ele havia deixado um email, então respondi normalment­e”, diz. A réplica, no entanto, veio com nome completo e histórico dos agentes. Sobre o agente Vinícius, contudo, ele acrescento­u: “E eu fui seu último controlado­r”.

Isso chamou a atenção de Godoy. “Todas as pessoas que viveram aquele período podem contar coisas que elas não vivenciara­m em primeira pessoa. Algo que foi contado a elas, fatos notórios, entre os quais muita coisa que é lenda ou não se sustenta. Mas o que o cara fala em primeira pessoa, ‘eu fiz, e foi assim’, aí a coisa começa a mudar de figura”, explica o jornalista.

Um ano de conversa se passou até que, por intermédio de pistas e informaçõe­s obtidas, Godoy conseguiu identificá­lo. Era Antonio Pinto, conhecido como Doutor Pirilo, um exoficial da Força Aérea Brasileira. Pirilo foi por décadas controlado­r de Severino Teodoro de Mello, integrante do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que, capturado pelo COI, foi convertido em espião – e como tal permaneceu até após a redemocrat­ização. Era o agente Vinícius.

A descoberta deu início a mais dez anos de pesquisas em cinco países, que culminam no lançamento de Cachorros, A História do Maior Espião dos Serviços Secretos Militares e a Repressão aos Comunistas até a Nova República (Alameda). Será neste 1.º de agosto, a partir das 18h30, no restaurant­e Rota do Acarajé, em São Paulo. A obra conta, a partir de entrevista­s e documentos, a história dos dois homens.

TRÊS PARTES. O livro é dividido em três partes: a trajetória de Pirilo nas forças de repressão da ditadura, a atuação de Mello no PCB e a militância comunista e, então, o momento em que as vidas dos dois se cruzam e Mello, após sua prisão e liberação, se torna o agente Vinícius. Juntos, são um fio condutor para contar parte importante da história do País.

“Contar um pouco dessa história de como a ilegalidad­e do Partido Comunista foi feita e de como ele foi reprimido é também contar a forma como a política pública nesse período foi envenenada por essa restrição”, explica.

Depois de identifica­r Pirilo, Godoy disse ao ex-militar que muitas pessoas, até hoje, não acreditava­m que Mello fosse um espião. “Ele falou assim: ‘Ah é? Eu conversei com ele na semana passada’. Respondi então para ele me passar o telefone dele. Passou e com algumas recomendaç­ões: ‘Olha, você vai ligar para ele, quem vai atender o telefone vai ser a mulher dele e ela vai perguntar quem quer falar com Mello. Diga que é o amigo do Pirilo’”, conta o jornalista.

Dito e feito. O ex-espião atendeu, não perguntou quem era Godoy e respondeu a todos os questionam­entos. “Fiz isso ao lado de um integrante da Comissão de Mortos e Desapareci­dos Políticos. Primeiro, porque eu acho que era importante que alguém testemunha­sse isso. E, segundo, porque era possível que Mello tivesse conhecimen­to do destino de alguns dos desapareci­dos do partido”, lembra.

Mello contou como foi sua cooptação em 1974 e por quanto tempo – e como – ele trabalhou como espião dentro do PCB. O acordo entre ele e os captores dizia que ele seria solto, mas teria de guiar os integrante­s da repressão em encontros clandestin­os com militantes do partido. Ao menos uma dezena de dirigentes foram capturados, torturados e/ou assassinad­os pelo Centro de Inteligênc­ia do Exército (CIE) em razão do trabalho do agente Vinícius.

“Em um primeiro momento, ele foi colocado ante a alternativ­a de trair ou morrer. E optou por ficar vivo”, diz Godoy. “É compreensí­vel do ponto de vista humano, mas ele poderia, como outros agentes, fugir e se arriscar. Recuperar a liberdade e tentar avisar o primeiro colega com quem manteve contato. Mas não fez isso.”

“Ele não só permite durante meses que os militares o sigam, como vai estabelece­ndo toda uma rede de contatos. Cada pessoa que se encontrava com ele também tinha. Ou seja, é uma coisa exponencia­l. Chega um momento em que centenas de pessoas estão mapeadas e podiam ser vigiadas pelos militares”, completa.

COMPREENDE­R. Nesses dez anos de pesquisa para Cachorros, Godoy conversou com dezenas de participan­tes dos dois lados. “A maioria ainda cultivava as mesmas crenças do passado. Revelaram segredos, torturas, desapareci­mentos e mortes”, diz, na introdução do livro.

Como lidar com isso? “Para mim, é muito claro que compreende­r não significa aceitar. Parte do meu trabalho é compreende­r essas pessoas. Não acredito que a História seja feita por loucos que fazem barulho sem significad­o nenhum. Um militar que trabalhava no DOI-Codi nos anos 1970 não acordava pensando em fazer maldade com os presos. Ele tinha um trabalho. Como era racionaliz­ado isso? Como ele se sentia? São questões a serem estudadas e compreendi­das.”

Além das entrevista­s, Godoy transcreve­u dezenas de fitas de reuniões do PCB, analisou documentos em vários países. “A união da paixão jornalísti­ca, o contar histórias, com a minha paixão por História, justifica esse trabalho. Dá um sentido de permanênci­a”, diz o autor. O esforço culminou em revelações não só do período militar, mas das atividades de espionagem nos governos José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso.

A Operação Pão de Açúcar, por exemplo, funcionou como uma espécie de atuação paralela e continuou pagando salário a Mello até 1995. As descoberta­s de Godoy incluem novos detalhes sobre o Massacre da Lapa – que resultou na morte de três dirigentes do PCdoB –, na perseguiçã­o ao MR-8 e os assassinat­os de Stuart Angel Jones, filho da estilista Zuzu Angel, e de Rubens Paiva, duas mortes emblemátic­as daquele período.

Antonio Pinto, o Pirilo, e Severino Teodoro de Mello, o agente Vinícius, não viveram para ver o livro publicado. O primeiro, cujo enterro é o ponto de partida para a obra, morreu em 2018. O outro morreu em 2023, aos 105 anos, fato que Godoy só descobriu em janeiro deste ano e que costurou o fim do livro. •

Cachorros

Livro de Marcelo Godoy. Lançamento: restaurant­e Rota do Acarajé. Rua Martim Francisco, 529/533, Santa Cecília.

5ª, (1º/8), a partir das 18h30*

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DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO Godoy: dez anos de buscas, em cinco países, para obra que evidencia gosto do autor pela pesquisa
 ?? ?? Cachorros: A História do Maior Espião dos Serviços Secretos Militares e a Repressão aos Comunistas Até a Nova República Marcelo Godoy Editora Alameda 552 págs., R$ 149
Cachorros: A História do Maior Espião dos Serviços Secretos Militares e a Repressão aos Comunistas Até a Nova República Marcelo Godoy Editora Alameda 552 págs., R$ 149

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