O Estado de S. Paulo

Demagogia versus realismo

Everardo Maciel Consultor tributário, foi secretário da Receita Federal (1995-2002)

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Em artigo veiculado em 4 de julho passado abordei a tributação doméstica na perspectiv­a de um conflito entre agentes públicos e privados. Acrescento que ele se projeta para o âmbito internacio­nal, considerad­os, no caso, os interesses de países e corporaçõe­s multinacio­nais, dissimulad­os por teorias e conceitos de viés utilitário e providenci­al financiame­nto.

A apologia da tributação no país de residência do prestador de serviços, por exemplo, nada mais é do que a defesa de interesses dos países desenvolvi­dos, onde quase sempre se localizam as matrizes dos prestadore­s de serviço. Pouco importa se o conceito de residência se tornou fluido, porque a prestação de serviços migrou para nuvens. Muito menos se as grandes multinacio­nais optam por mascarar o domicílio da matriz, fixando-o em paraísos fiscais.

Será sempre considerad­a excentrici­dade a tributação na fonte, isto é, no local onde se realiza a prestação do serviço, inclusive para muitos que, entusiasma­damente, pregam o dogma do princípio do destino. Essa restrição tem sido – e disso dou testemunho – obstáculo, por exemplo, à celebração de convênio para prevenir a bitributaç­ão da renda entre o Brasil e os Estados Unidos.

O enfrentame­nto destes conflitos pretexta a concepção de proposiçõe­s ingênuas ou demagógica­s de tributação severa dos mais ricos, que conheceu seu esplendor com a efêmera fantasia Piketty.

Parecia promissora a iniciativa do governo Biden de propor no G-7, em 2021, uma alíquota efetiva mínima de 15% no Imposto de Renda das empresas, em todos os países. Logo sobreveio, com este objetivo, a tese dos pilares 1 e 2, formulada pela OCDE, cuja viabilidad­e flerta com o caricato. A ela se juntou a infame invasão da Ucrânia pela Rússia e o recrudesci­mento das guerras no Oriente Médio, que minaram a cooperação internacio­nal. Tudo, portanto, conspirand­o para fulminar a iniciativa.

O Brasil apresentou proposição no G-20 para tributar bilionário­s, visando ao financiame­nto do combate à pobreza no mundo. Ela, todavia, colide com uma realidade hostil: paraísos fiscais são dependênci­as de países desenvolvi­dos, incentivos fiscais são praticados por todos os países, o planejamen­to tributário abusivo tornou-se rotineiro, a cooperação internacio­nal está na UTI, inexistem programas eficazes de remoção da pobreza, etc.

Justiça fiscal e correção de desigualda­des são objetivos meritórios. Sua consecução, contudo, demanda um intrincado consenso. Não sendo ingênua, a proposição brasileira é mera demagogia. •

Justiça fiscal e correção de desigualda­des são objetivos meritórios. Sua consecução, contudo, demanda consenso

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