O Estado de S. Paulo

Desculpas seletivas

Abordagem policial a jovens negros filhos de diplomatas expõe realidade discrimina­tória

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Aabordagem truculenta de uma patrulha da Polícia Militar (PM) do Rio a um grupo de cinco adolescent­es, três deles negros, em uma rua movimentad­a de Ipanema obrigou o Itamaraty a emitir pedidos formais de desculpas às representa­ções diplomátic­as de Burkina Faso, Gabão e Canadá.

Os três rapazes negros, todos filhos de diplomatas, não falam português e foram o principal alvo dos PMs que desceram da viatura policial de arma em punho, apontando para suas cabeças. Dos dois jovens brancos, um era brasileiro e tentava traduzir para os amigos – assustados, como ele próprio – as ordens dos policiais que os empurravam contra um muro para a revista. Em entrevista à TV Globo, um dos rapazes brancos relatou que a agressivid­ade dos policiais ficou de fato concentrad­a nos três africanos.

Os policiais, ao constatar a situação, “aconselhar­am” os meninos negros a não perambular­em pela região àquela hora (20h06) porque corriam o risco de serem novamente “pegos”.

A embaixatri­z do Gabão no Brasil, Julie-Pascale Moudouté, mãe de um dos garotos, cobrou providênci­as judiciais. “Como que você vai apontar armas para a cabeça de meninos de 13 anos, como é que é isso?”, perguntou, com razão.

É o que certamente perguntam mães de jovens costumeira­mente abordados pela polícia de maneira truculenta nas favelas e zonas periférica­s do Rio de Janeiro. Nesses casos, porém, não se tem conhecimen­to de nenhum pedido de desculpas por parte do Estado.

A rápida retratação do Itamaraty tentou evitar que o caso evoluísse para um grave incidente diplomátic­o. A Secretaria de Estado de Polícia Militar abriu investigaç­ão para apurar a conduta aparenteme­nte abusiva dos policiais e informou que vai verificar o conteúdo das câmeras corporais que eles portavam. Seria bom que essa providênci­a se repetisse como consequênc­ia de qualquer denúncia de abuso policial em abordagens de jovens negros que não são filhos de diplomatas, mas isso, como se sabe, está longe de ser a regra.

Ainda não é possível dizer exatamente o que motivou os policiais a fazer a abordagem dos adolescent­es negros filhos de diplomatas, porque a investigaç­ão está em andamento, mas uma das hipóteses óbvias é de que tenha havido o chamado “perfilamen­to racial” – quando a busca policial é realizada com base na raça dos indivíduos abordados, isto é, conforme critérios subjetivos. Em outras palavras, é bastante plausível a possibilid­ade de que os rapazes tenham sido abordados (com visível severidade) apenas pelo fato de que eram negros, o que teria sido suficiente para qualificar sua atitude como suspeita.

É evidente que nada disso encontra respaldo na lei, que demanda critérios rigorosame­nte objetivos para a abordagem policial, como, aliás, decidiu o Supremo Tribunal Federal em abril passado a respeito de um caso de “perfilamen­to racial”. Ser negro precisa de uma vez por todas deixar de configurar “atitude suspeita”, por razões que deveriam ser gritanteme­nte óbvias.l

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