Nosso ator maior
Othon Bastos se recusa a sair de cena. Sempre me pergunto como um ator ou uma atriz com aquela idade ainda consegue decorar suas falas no palco ou diante de uma câmera. Já fiz essa pergunta a Fernanda Montenegro, 94 anos, mas esqueci o que ela me disse. De Othon Bastos só não esqueci a resposta porque simplesmente esqueci de lhe fazer a pergunta.
Por acaso ou não, Fernanda e Othon são os nossos dois maiores atores em atividade, dois patrimônios cujas trajetórias artísticas há muitas luas fazem parte de nossas vidas, de nossa convivência cultural. Um espetáculo como Eu Não me Entrego Não, monólogo criado por Flávio Marinho para Othon rememorar sua vida e sua carreira, contar histórias e ruminar ideias, em cartaz desde sexta-feira no Teatro Vanucci, no Rio, é muito mais que um solilóquio – por vezes divertido, como o próprio ator –, é um emocionante reencontro com as biografias de todos aqueles da plateia que tiveram o privilégio de vivenciar, em parte ou totalmente, a cultura brasileira das últimas sete décadas.
O título é o primeiro achado do espetáculo: um repto confessional do protagonista (91 anos de idade, 74 de palco, 68 de televisão, 62 de cinema) e uma evocação do desafio lançado por Corisco, o atormentado cangaceiro que Othon imortalizou em Deus e o Diabo na Terra de Sol. Aproveitado por Sérgio Ricardo de uma sugestão de Tom Zé, que o recolhera de uma velha cantiga anônima do sertão baiano, o desafio de Corisco é uma das lembranças mais indeléveis do filme de Glauber Rocha.
Além de cangaceiro, Othon foi, na tela, repórter, coronel do Nordeste, professor, delegado, padre, capitão, motorista de ônibus, embaixador, mágico, dono de drivein, encarnou Padre Antonio Vieira, Floriano Peixoto, Tancredo
Neves, Carlito Rocha e toda uma linhagem de personagens literários, de Machado de Assis (fez o Bentinho em Capitu), Graciliano Ramos (o Paulo Honório, de São Bernardo, talvez sua melhor performance no cinema), Lima Barreto, José Lins do Rego, Jorge Amado, dirigido por quase todos os diretores fundamentais do Cinema Novo. No teatro foi Iago, interpretou Gil Vicente, Strindberg, Chekhov, Brecht, Guarnieri, Suassuna, participou da renovadora experiência cênica de Martim Gonçalves na Bahia, montou um teatro (Vila Velha, em Salvador), integrou o Grupo Oficina em sua fase mais fervilhante, na década de 1960, trabalhou com Augusto Boal, José Celso Martinez Corrêa e Gianni Ratto.
E pensar que uma professora do ensino fundamental insistiu para que Otto jamais se metesse com arte, muito menos com a arte de representar, conselho malsão que quase o desviou para a faculdade de odontologia. Impossível imaginar Othon com um boticão na mão. Com um parabélum, sim, conforme prometido por Corisco.
A temporada de Eu Não me Entrego Não vai até 23 de julho. •