O Estado de S. Paulo

O show de Trump

- Lourival Sant’Anna carta@lourivalsa­ntanna.com

A condenação de Donald Trump lança os EUA em um cenário de incertezas nas esferas jurídica e política. Obviamente, o ex-presidente e candidato não gostaria de estar nessa situação. Por outro lado, ele tem uma habilidade única de navegar em uma trama inédita e carregada de imprevisib­ilidade como essa.

Esse é o grande trunfo de Trump: surpreende­r seus oponentes com lances para os quais eles não estão preparados, e não há um roteiro de como responder. Os autores da Constituiç­ão americana não previram um condenado em processos criminais com chances de se eleger presidente.

Depois da Guerra Civil, concluída em 1865, foi acrescenta­da a 14.ª Emenda, que impede envolvidos em insurreiçõ­es de exercer cargos federais. Ao julgar se esse caso se aplicava ao envolvimen­to de Trump na invasão do Capitólio, a Suprema Corte decidiu, por 5 votos a 4, que o Congresso precisaria deliberar se o ex-presidente cometeu esse crime. Os republican­os têmmaioria na Câmara.

AVANÇO. Trump ganhou espaço como ator antissiste­ma. Ele reflete a insatisfaç­ão de parte dos americanos com o funcioname­nto das instituiçõ­es. O fato de ser condenado em processo criminal e réu em outros três só reforça a adesão de seus eleitores. Duas pesquisas, uma em abril e outra em maio, da

CNN e do Emerson College, respectiva­mente, revelaram que entre 24% e 25% dos eleitores de Trump “poderiam reconsider­ar” sua escolha se ele fosse condenado nesse processo, envolvendo a compra do silêncio da atriz pornô Stor my Daniels sobre um caso entre ambos.

A sondagem da CNN mostrou ainda que esse é o processo com menos impacto sobre os eleitores de Trump. Os outros três, sobre a retenção de documentos confidenci­ais em sua residência na Flórida, a tentativa de reverter a derrota eleitoral na Geórgia e a conspiraçã­o para continuar no poder mesmo tendo perdido para Joe Biden, nessa ordem, afetariam mais o humor do eleitorado.

DEBANDADA. Como o presidente é eleito pelo colégio eleitoral, e em 44 Estados o resultado é previsível, o foco da atenção está naqueles que efetivamen­te definem a votação, que neste ano serão Arizona, Nevada, Geórgia, Michigan, Pensilvâni­a e Wisconsin. Pesquisas revelaram que, se Tru mp fosse condenado em qualquer um dos quatro processos criminais, parte dos eleitores independen­tes nesses seis Estados se negaria a votar nele.

Tudo isso é significat­ivo, consideran­do que a disputa deverá ser acirrada. Entretanto, essas pesquisas são anteriores às condenaçõe­s, e à resposta que Trump constrói diante delas. Na manhã seguinte à condenação,

na sexta-feira, ele fez um discurso diante de jornalista­s e seguidores, ao pé da escada rolante da Trump Tower, na 5.ª Avenida, em Nova York, de onde se lançou pré-candidato a presidente, em 2016. O que havia sido anunciado como entrevista coletiva, na verdade, foi ummonólogo de frases desconecta­s, mas contundent­es.

“Se podem fazer isso comigo, podem fazer com qualquer um”, começou Trump. “São pessoas más. Acho que seis estão usando remédios”, continuou, referindo-se aparenteme­nte aos jurados. “Eles vêm do Oriente Médio, África, Ásia, de instituiçõ­es de saúde mental, prisões”, continuou, saltando bruscament­e para os imigrantes. “O presidente, um grupo de fascistas, não faz nada a respeito.”

“Querem destruir nosso país, que está emmuito má forma”, prosseguiu Trump. “Querem

aumentar impostos, impedir vocês de ter carros, tornar muito possível para os chineses fazer carros para nós.” O discurso foi e voltou de forma circular nas suas ideias-força: a perseguiçã­o da Justiça contra ele, a incompetên­cia de Biden e a imigração. Disse que o juiz do caso, Juan Merchan, que por sinal nasceu na Colômbia, “parece um anjo, mas é um diabo”. E que 5 de novembro (data da eleição) “será o dia mais importante da história” dos EUA.

VERSÃO. O ex-presidente lançou também novos “fatos alternativ­os”, termo cunhado por sua ex-conselheir­a Kellyanne Conway, no início de seu governo, em 2017: a criminalid­ade caiu 72% na Venezuela, cujas prisões estariam vazias, assim como as do Congo, porque os detentos teriam migrado para os EUA; 29 mil chineses, a maioria homens em perfeito estado para serem soldados, teriam entrado no país, levando tendas e celulares de última geração, para formar um exército, e assim por diante.

Acuado, Trump reage da forma que sabe: construind­o uma realidade própria para seus seguidores habitarem. Até que ponto isso convencerá os independen­tes, ou se votarão em Trump apesar de seus problemas com a Justiça, será determinan­te nessa eleição.

Trump tem uma habilidade única de navegar em uma trama carregada de imprevisib­ilidade

É COLUNISTA DO ESTADÃO E ANALISTA DE ASSUNTOS INTERNACIO­NAIS

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JULIA NIKHINSON/AP Trump faz discurso errático após ser condenado em Nova York
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