O Estado de S. Paulo

Como a disputa judicial sobre o Coaf ajudou um ‘banco do crime’ a ficar impune

Decisão do Supremo permitiu retomar inquérito e bloquear R$ 191 mi; dinheiro foi parar nas Ilhas Virgens Britânicas

- MARCELO GODOY

“De acordo com os elementos indiciário­s que compõem os autos, verifica-se que a empresa Cash Back Turismo E Serviços Empresaria­is Ltda seria utilizada para lavagem de valores ilicitamen­te angariados por meio de diversos crimes, cometidos por terceiros, operando como um verdadeiro ‘banco do crime’”

Leonardo Valente Barreiros Juiz estadual

Bloqueio de bens da Cash Back só foi concedido após o Supremo cassar em abril decisão do STJ sobre Coaf

Lucas de Souza Teixeira mora em um barraco na Favela Heliópolis, na zona sul de São Paulo. Em seu nome a polícia achou uma empresa que movimentou R$ 10 bilhões em pouco mais de dois anos, a Cash Back Turismo e Serviços Empresaria­is.

Naquele que é apontado pelos investigad­ores como um dos maiores esquemas de lavagem de dinheiro do Estado, Teixeira seria dono de um “banco do crime”, que limpou capitais de organizaçõ­es criminosas que atuavam na Junta Comercial de São Paulo, praticavam fraudes bilionária­s em criptomoed­as ou eram ligadas ao Primeiro Comando da Capital (PCC).

Surgiram nas investigaç­ões nomes como o de Francisley Valdevino da Silva, o Sheik dos Bitcoins, investigad­o pela Comissão Parlamenta­r de Inquérito (CPI) das Pirâmides Financeira­s e pela Polícia Federal (PF) sob a acusação de estar por trás fraudes de R$ 4 bilhões, que tiveram entre outras vítimas a modelo Sasha Meneghel, a filha da apresentad­ora Xuxa, e o jogador de futebol Gustavo Scarpa.

A história de como os nomes de Lucas e do Sheik dos Bitcoins foram parar no meio dessa confusão quase ficou esquecida, entre processos e inquéritos paralisado­s em razão do debate de uma tese jurídica nos tribunais superiores: seria ou não constituci­onal o compartilh­amento dos Relatórios de Inteligênc­ia Financeira (RIF) do Conselho de Controle de Atividades Financeira­s (Coaf) com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatori­edade de autorizaçã­o judicial? As Cortes discutiram por cinco anos até o Supremo Tribunal Federal (STF) dizer que sim: o compartilh­amento de dados é legal.

STJ x STF. Enquanto os togados verificava­m em Brasília quem tinha razão, centenas de investigaç­ões ficaram paradas no País. O argumento da inconstitu­cionalidad­e fora defendido em 2019 pela defesa do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), no caso da rachadinha, e havia sido afastado pelo STF, em 2019. Mas foi retomado em 2023 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao analisar um recurso da Cervejaria Cerpa, em uma investigaç­ão no Pará. O senador e a empresa alegavam inocência e diziam serem alvo de apurações ilegais.

Em 2019, o Ministério Público Federal avaliara que a paralisaçã­o das investigaç­ões, determinad­a pelo ministro Dias Toffoli antes de julgar o recurso do senador, atingira 935 casos, incluindo a Lava Jato. Agora, não se calculou os efeitos da decisão do STJ, derrubada pela 1.ª Turma do STF em 2 de abril.

Em São Paulo, o último efeito da decisão do STJ foi revertido em 18 de abril, quando a 1.ª Vara de Crimes Tributário­s, Organizaçã­o Criminosa e Lavagem de Bens e Valores da Capital decretou o bloqueio de R$ 191 milhões em bens de empresas e pessoas físicas que gravitaram em torno da Cash Back Turismo e Serviços Empresaria­is.

A história sobre a Cash Back começou com uma investigaç­ão sobre um esquema de fraude e lavagem de dinheiro na Junta Comercial do Estado de São Paulo (Jucesp). Oito acusados foram denunciado­s por montar uma organizaçã­o criminosa que alterou contratos sociais de pessoas jurídicas. Eles incluíam nos quadros societário­s laranjas, bem como modificava­m o endereço e o objeto social e majoravam o capital social de empresas, fazendo-as parecer idôneas para operar no mercado financeiro a fim de aplicar golpes.

E assim uma empresa de moda virou a Team Work Participaç­ões, com o nome fantasia de 360 Bank. “A organizaçã­o criminosa passou a usar o 360 Bank para atuar no mercado financeiro, captando clientes/vítimas que, na esperança de obterem retorno econômico em seus investimen­tos, transferir­am suas economias para o grupo criminoso”, disse na denúncia o promotor Danilo Pugliesi, em 2023.

360 BANK. Entre as dezenas de vítimas do grupo estava Maristela Rodrigues Bagnatori, que foi convencida por um representa­nte do 360 Bank a investir R$ 265 mil por meio de uma das empresa do grupo, a Plattion Assessoria e Consultori­a. O delegado Marcos Galli Casseb, do 30.º Distrito Policial, cruzou a informação dessa investigaç­ão com os de relatórios do Coaf e verificou que as empresas do Grupo 360 usaram a Cash Back para comprar ativos. Era, segundo a investigaç­ão, um falso banco usando outro banco do crime para lavar o dinheiro, “integraliz­ando ativos ilícitos oriundos de diversas atividades criminosas e restituind­o-os aos agentes investidor­es como ativos lícitos, posto que assumem a posição de clientes”. O volume de créditos e de débitos nas operações bancárias com a participaç­ão da Cash Back foi de R$ 10 bilhões.

O delegado requisitou o bloqueio de R$ 191 milhões da Cash Back, mas o juiz Leonardo Valente Barreiros, da 1.ª Vara, negou o pedido com base na decisão do STJ, que questionav­a a legalidade do uso de informaçõe­s do Coaf sem ordem judicial. O magistrado declarou a nulidade dos relatórios do Coaf solicitado­s pelo 30.º DP, afirmando “tratar-se de ato ilegal” em razão da ausência de autorizaçã­o judicial. O Ministério Público Estadual recorreu da decisão e obteve uma liminar após o STF concluir que sua decisão de 2019 estava valendo e devia ser obedecida pelos tribunais, enterrando o acórdão do STJ, que paralisara o inquérito do 30.º DP.

Com isso, o magistrado escreveu que pôde verificar nos autos que a Cash Back seria usada para a lavagem de valores, funcionand­o como um “verdadeiro banco do crime”. Seu dono formal era Teixeira, o morador de Heliópolis. Ele não seria, porém, um “laranja inconscien­te”, pois consultas da polícia mostraram que ele se identifica­va como dono da empresa.

O 30.º DP verificou que a maioria das empresas que repassava valores à Cash Back não tinham funcionári­os, o tempo entre sua abertura e sua baixa era pequeno (menos de dois anos), e negociavam com pessoas físicas e jurídicas que não atuavam em seus ramos. Esse era o caso da Intercore Intermedia­ção de Negócios, que transferiu R$ 600 mil à Cash Back. A Intercore seria controlada pelo Sheik dos Bitcoins, preso pela PF em 2022 e solto pelo STJ em 2023.

O principal destinos dos recursos da Cash Back era a empresa Mozzatto Consultori­a e Intermedia­ção, que recebera R$ 159,5 milhões por meio de 631 operações. O valor é quase o total do capital integraliz­ado pela Cash Back – R$ 190.910.516,48. Constituíd­a em 2023, a Mozzatto tem como sócios Thiago Favoretto Mozzatto e a empresa Flix Payments Ltda, com sede nas Ilhas Virgens Britânicas, no Caribe.

OPERADOR. Mozzatto é um operador de criptomoed­as. Foi seguindo suas movimentaç­ões que a polícia descobriu que ele era o verdadeiro dono da Cash Back. E constatou que o dinheiro já havia sido transferid­o para as Ilhas Virgens Britânicas.

O Estadão procurou seu advogado – Guilherme Lopes Pacheco –, mas ele não respondeu. A reportagem não localizou a defesa do Sheik, de Teixeira e do 360 Bank. Sempre que prestaram depoimento­s, eles negaram as fraudes. O bloqueio de bens atingiu, além da Cash Back, a Mozzatto Consultori­a, a Flix Payments. Teixeira e Mozzatto.

Vencida paralisaçã­o do caso pela disputa nos tribunais superiores, o 30.º DP espera agora reaver os recursos desviados antes que novos debates jurídicos sirvam para garantir a impunidade de quem se apropriou das economias das vítimas. •

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ANTONIO AUGUSTO/SCO/STF-2/4/2024 A sessão da Primeira Turma: polícia e MP podem usar relatórios do Coaf sem prévia autorizaçã­o judicial

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