O Estado de S. Paulo

‘Não se pergunte como são feitas salsichas e leis’

Um evento recente ilustrou a compreensã­o profunda de Otto von Bismarck das alquimias do nosso Legislativ­o

- Claudio de Moura Castro PH.D., CONSULTOR INDEPENDEN­TE, É PESQUISADO­R EM EDUCAÇÃO

Essa tirada é de Otto von Bismarck, grande frasista e longevo chanceler alemão do século 19. Um evento recente ilustrou sua compreensã­o profunda das alquimias do nosso Legislativ­o. Diante de uma proposta de lei na área da educação, fui convidado a participar de uma audiência no Senado, compondo um grupo de nove educadores. Todos no centro do espectro ideológico e experiente­s na análise de políticas públicas. O objetivo era comentar um péssimo documento que circula.

Bem sei que essa audiência não passa de um ínfimo fragmento do que entra no caldeirão que será remexido, até sair uma lei. Faço como arqueólogo­s que, diante de um ossinho de dinossauro, tentam imaginar como era o bicho inteiro. E o contorno gerado por essa audiência não prenunciav­a boas leis.

O desenrolar do processo revelou surpresas (talvez não para Bismarck, se ainda estivesse por aí). Em vez de apenas nove pessoas, os participan­tes haviam misteriosa­mente crescido para 29, além dos senadores presentes que poderiam intervir a qualquer momento.

Fiz uma estimativa de como se usaram as cinco horas da sessão (sem interrupçõ­es). Simplifica­ndo, classifico as apresentaç­ões em três categorias. As que não diziam nada atinente ao tema ou nem sobre tema algum, gastando uns 40% do tempo. As que reivindica­vam alguma coisa ou pediam mais recursos para os grupos que representa­vam. Digamos, mais 40%. O pouco tempo restante foi usado para comentar o tal documento.

Em mais detalhes, vejamos cada bloco de tempo. No primeiro, borbulhava­m discursos grandiloqu­entes sobre os mais variados assuntos. Alguns de notável imbecilida­de. No fundo, havia uma total ausência de proximidad­e ao propósito de avaliar o tema de um documento sobre educação: será que promoverá o aprendizad­o? Uma boa fração do tempo total foi gasta com os pródigos cumpriment­os, elogios, referência­s a presentes e ausentes. Ganharíamo­s uma boa hora, ou mais, sem tais fartas distribuiç­ões de encômios e saudações.

No segundo bloco de tempo estavam as apaixonada­s defesas dos interesses de algum grupo e os pedidos de financiame­ntos mais generosos para ele. Os presentes exibiam estilos pessoais bem folclórico­s, alguns nada congruente­s com a liturgia do órgão máximo do Legislativ­o. Tampouco se tocou em ideias para orientar o futuro da educação.

Finalmente, já bem para o fim, acontecera­m as apresentaç­ões do grupo que pediu a audiência. Não entro no mérito dos comentário­s, pois não é sobre isso que escrevo. De fato, não se trata de estarem certos ou errados. Interessa os que colimavam o objetivo do encontro: discutir o documento. Além deles, alguns outros ofereceram comentário­s pertinente­s, em particular, sobre o processo que leva à aprovação de uma tal proposta. Mas não eram sobre temas propriamen­te educaciona­is. Vindo dos outros poucos que falaram de educação, não faltaram tolices – factuais ou metodológi­cas. Na minha contabilid­ade, em cinco horas, menos de uma foi sobre o tema proposto.

Com toda a minha ingenuidad­e, fico ruminando sobre o que levou uma reunião com nove pessoas a virar um circo com 29. Que química, ocorrendo na máquina do Legislativ­o, leva à montagem de um happening tão disparatad­o? Sem reivindica­r sapiência, quem sabe, havia de criar um grupo mais variado, para diluir a mensagem bem orquestrad­a que trazíamos? Quem sabe, encher de falastrões o grupo para cansar o público? Dessa forma, as mensagens importante­s seriam perdidas na entropia verbal lá consumada. Quem sabe, há sempre que compor uma tal reunião de forma ideologica­mente equilibrad­a, com toda a cacofonia das representa­ções? São apenas perguntas, não respostas.

Relembrand­o o que ouvi, percebi certas recorrênci­as. Não se fala mal de ninguém nem de ideias. Nada de fazer inimigos. E não houve a mais remota tentativa de gerar um diálogo ou uma troca de ideias. Mas vociferar pode. Um engano perpetrado: exemplos ilustram e servem apenas para melhor entender. Proposiçõe­s sérias precisam ser baseadas na boa pesquisa. Até os senadores pecaram aí.

Os atos mais inteligent­es foram praticados pela maioria dos senadores, ao não comparecer. Foram poupados de uma chatice inimagináv­el. Os competente­s assessores legislativ­os que garimpem o evento, para ver se alguma coisa se aproveita.

O processo é complicado demais e parece que não entendi. Concebi um dinossauro, mas o ossinho era de pterodácti­lo. Pior, minhas teorias conspirató­rias conflitam com as nossas leis, pois, em assuntos importante­s, tendem a ser razoavelme­nte boas. É, justamente, o milagre sugerido por Bismarck. O entulho que entra no processo vai encontrand­o o seu lugar – no lixo – e as ideias salváveis emergem, com alguma chance de sucesso. Quem sabe esse fog semântico é proposital, para permitir às raposas mais sabidas se mexerem de forma sorrateira? Não logro entender a sutil arte da política. Essa é a boa notícia. Mas, para quem participa de um evento como esse, a impressão é desanimado­ra.

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