O Estado de S. Paulo

O orçamento secreto ‘pegou’

Decisão do STF que deveria pôr fim ao esquema virou letra morta. Lula é o ‘bobo da corte’ da vez, perdido ante um Congresso cada vez mais senhor do Orçamento, oficial e maliciosam­ente

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Ésempre bom refrescar memórias diante da naturaliza­ção de certas aberrações na vida política nacional. O Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a inconstitu­cionalidad­e do chamado orçamento secreto em dezembro de 2022. Um ano e meio antes, este jornal revelou ao País a existência desse sofisticad­o esquema de compra de apoio parlamenta­r urdido pelo governo do então presidente Jair Bolsonaro e lideranças do Congresso. Na prática, porém, aquela correta decisão do STF não resistiu ao teste do tempo – ou não “pegou”, como se costuma dizer por aqui sobre leis ou decisões judiciais que viram letra morta, ignoradas olimpicame­nte que são até por mandatário­s. O que “pegou” mesmo foi o orçamento secreto.

Além da subversão da decisão da mais alta instância do Poder Judiciário, uma daquelas aberrações por si só, há fartas evidências de que o esquema, ao que parece, veio para ficar, ainda que o instrument­o técnico utilizado para sua perpetuaçã­o não seja mais a emenda de relator (RP-9). Há poucos dias, o Estadão revelou que o orçamento secreto não apenas segue vivíssimo no governo do presidente Lula da Silva, como se converteu em valioso trunfo eleitoral neste ano de eleições municipais. A rigor, nem de “moeda de troca” o esquema pode mais ser chamado, pois ainda que o governo federal abra as comportas por onde jorram as emendas parlamenta­res, oficiais e oficiosas, isso não se reverte em apoio congressua­l minimament­e confortáve­l.

Ainda no campo das recordaçõe­s, convém lembrar que Lula da Silva, então candidato à Presidênci­a da República, referiu-se a Bolsonaro como um “bobo da corte” durante uma entrevista ao Jornal Nacional, da TV Globo. Lula aludia ao fato de Bolsonaro ser um chefe de Estado e de governo sem poder, pois era “refém do Congresso Nacional”, um presidente que nem “sequer cuida do Orçamento”, afinal, disse o petista, “quem cuida do Orçamento é o Lira”, em referência ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). Invertam-se as posições de Lula e Bolsonaro quase dois anos depois e o quadro segue rigorosame­nte inalterado. Como já sublinhamo­s nesta página, hoje, sob os auspícios de Lula, vige o “orçamento secreto 2.0”.

Pois é esse esquema em tudo antidemocr­ático – rebatizado e revigorado, mas igualmente inconstitu­cional – que tem não só alimentado o apetite voraz de certos parlamenta­res por nacos do Orçamento, sobretudo os que integram os grupos políticos liderados por Lira e pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), como turbinado as pré-campanhas de candidatos espalhados Brasil afora que disputarão as eleições municipais que se avizinham.

Uma parte dos recursos que outrora abasteciam o “orçamento secreto 1.0”, chamemos assim, passou à alçada do Poder Executivo a partir da decisão do STF de 2022. O valor de R$ 19,4 bilhões previstos para emendas RP-9 em 2023 foi redistribu­ído para sete Ministério­s (R$ 9,85 bilhões) – Saúde, Cidades, Desenvolvi­mento e Assistênci­a Social, Família e Combate à Fome, Desenvolvi­mento Regional, Agricultur­a e Pecuária, Esporte e Educação – e para a alínea das emendas RP-6, individuai­s (R$ 9,6 bilhões). Entretanto, isso se descortino­u como mera formalidad­e. À margem da decisão do STF, a disposição desses recursos em sua totalidade jamais saiu do raio de ação dos cupins do Orçamento no Congresso. Sem que “padrinhos” e “madrinhas” dos repasses dessa bilionária verba remanescen­te sejam identifica­dos, as pastas têm transferid­o o dinheiro para os municípios seguindo ordens de deputados e senadores – e fora do alcance de controles institucio­nais claros e precisos para manejo de recursos públicos, ainda que Executivo e Legislativ­o digam o contrário.

E sob essa opaca “gestão”, por assim dizer, a distribuiç­ão de uma vultosa parte do Orçamento segue orientada por critérios eminenteme­nte políticos, e não técnicos – que dirá morais ou republican­os. Prefeitura­s associadas a parlamenta­res recebem mais recursos do que outras somente em razão dessa proximidad­e, e não por necessidad­es comprovada­s. Além de secreto, esse orçamento é só para quem tem padrinho.

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