Lição de vida
Ele ganhou fama ao publicar histórias sobre sua rotina na limpeza pública. E, com isso, foi parar em Harvard, onde palestrou na Brazil Conference
“A importância de as pessoas negras ocuparem espaços de poder não diz respeito só à representatividade, mas a adicionar diferentes pontos de vista e teorias” Marta Celestino
Educadora
Inteligência emocional, resiliência e empatia. Segundo Valdeci de Souza Boareto, esses são os pilares principais de seu livro Comportamento Que Te Salva – A Vida sob o Olhar de um Gari Que Só Quer Respeito, que conta como é trabalhar nas ruas do Rio em uma das profissões mais desvalorizadas do Brasil.
O livro não levou o trabalhador da Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb) apenas a escrever autógrafos e dedicatórias. Graças à publicação, ele foi convidado a dar uma palestra na prestigiosa Universidade Harvard (EUA), em abril, durante a Brazil Conference.
Um dos casos apresentados no livro aconteceu durante a limpeza do Viaduto do Méier, na capital fluminense. “Eu estava lavando tudo bonitinho e todo mundo feliz gritando ‘Comlurb, Comlurb’. (...) Só que a felicidade durou muito pouco. No momento que tava tudo limpinho, veio uma pessoa, até bemvestida (...), que urinou no chão. E olhava pra mim enquanto fazia isso, me dando uma angústia”, relembra, em conversa com o Estadão.
O autor conta que os moradores e comerciantes que viram a cena se irritaram, sugerindo que jogasse o jato de água no infrator. Mas Boareto pensou melhor. “Tive de respirar e pensar: esse jato de água é muito forte. Posso derrubar ou até cegá-lo”, considerou, constatando que “as duas famílias (a dele e a do homem) iriam sofrer”.
Boareto pediu que o motorista desligasse o caminhão da água e se dirigiu ao homem. “Eu disse: ‘Sou seu amigo, rapaz. Eu estou fazendo isso aqui para a sociedade, para você também. Isso que você está fazendo não é normal, conta para mim o que tá acontecendo?’.” O gari chegou perto do autor das ofensas e o abraçou. O homem começou a chorar, conta o escritor. “Independentemente do que você faça, você sempre vai encontrar, de alguma forma, alguém que vai urinar naquilo que você esteja limpando com tanto amor e carinho.”
PRIMEIRAS VEZES.
A ida para a Brazil Conference representou várias “primeiras vezes” na vida de Boareto. Foi a primeira vez que ele viajou de avião e também que saiu do País. Antes, só havia deixado o Estado do Rio para uma breve visita a Minas Gerais.
Entre os palestrantes do evento na universidade americana estavam Edilene Lobo, primeira mulher negra a integrar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE); a líder indígena Lutana Kokama; Ernesto Batista Mané Júnior, uma das 100 pessoas negras mais influentes do mundo na área de política e governança; Reginaldo Lima, morador do Complexo do Alemão que aprendeu a ler no lixo e se tornou historiador, e Arthur Abrantes, que se formou em Harvard.
Agora, segundo Boareto, já surgiram propostas para lançar o livro em outras línguas, como francês e alemão, e também convites para fazer palestras em outros locais.
Além disso, ele vai lançar em breve seu segundo livro. Em uma versão ilustrada, ele se transforma no Garizinho Toddy para ensinar às crianças o que fazer com o lixo para cuidar melhor do planeta, além de ter uma atitude de respeito com o próximo. O objetivo é levar a nova publicação para todas as escolas do Rio e, quem sabe, do Brasil.
“A importância de as pessoas negras ocuparem espaços de poder e/ou visibilidade não diz respeito só à representatividade, mas ao fato de que adicionamos diferentes pontos de vista na construção de políticas, acordos e teorias”, afirma Marta Celestino, pesquisadora e CEO da Ebony English, empresa de tecnologia educacional que alia o ensino do inglês à cultura negra. “Esse movimento diz respeito à desconstrução da ideia de supremacia branca imposta pelo racismo estrutural. É a normalização da diversidade étnico-racial.” •