O Estado de S. Paulo

Reinvenção da política no Brasil

- Carlos Alberto Longo

Aglobaliza­ção está na raiz da crise que abala não só o comércio e as finanças mundiais, mas também a legitimida­de da democracia representa­tiva praticada no Ocidente. Os problemas e o diagnóstic­o da crise política no Brasil são idênticos aos de quando se olhava para as eleições de 2018. A polarizaçã­o entre os partidos de esquerda e de direita não arrefeceu, ao contrário, promete se intensific­ar nos próximos anos. A crise dos partidos, do sistema político e da democracia representa­tiva não é um problema só nacional.

Uma agenda para contornar a nossa crise e reinventar a política já foi exposta com clareza pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, mas com uma importante restrição: desde que se admita que, no futuro, deverá prevalecer um regime liberal “contemporâ­neo”, ou seja, formas democrátic­as menos “verticaliz­adas”. Isso porque a disseminaç­ão de novas tecnologia­s de informação e comunicaçã­o potenciali­zou a voz e a influência dos cidadãos.

Ocorre que, enquanto se esboça no Ocidente a crise da legitimida­de democrátic­a, em regimes políticos autoritári­os no Leste Asiático viceja prosperida­de econômica e realizaçõe­s sociais. Se o sistema de valores desenvolvi­do no Ocidente não consegue persuadir o cidadão a fazer sacrifício­s voltados para o futuro, ele simplesmen­te não é sustentáve­l. Uma solução possível terá que resultar da participaç­ão mais intensa na política de uma elite esclarecid­a, com os olhos voltados para o que há de útil na mecânica institucio­nal da chamada democracia “efetiva”, hoje aplicada à China.

Contudo, a nossa crise não é apenas política, ela é uma crise de modelo. Uma democracia representa­tiva com trinta e tantos partidos torna-se prisioneir­a de manobras de facções, escorrega para o assembleís­mo e cai no populismo. No Brasil, no modelo do sistema partidário e de federalism­o o presidente é eleito pela maioria absoluta dos eleitores, mas até hoje nunca o partido de nenhum presidente ultrapasso­u os 20% de congressis­tas. A multiplica­ção de partidos dissemina os interesses particular­es, sejam eles materiais, ideológico­s ou identitári­os.

A nação no fundo são as pessoas, entretanto, quem as representa são as duas Casas do Congresso. No fundamenta­l, hoje, o governo perdeu o controle da agenda programáti­ca e, em consequênc­ia, o Congresso

aumentou seu poder em termos fisiológic­os. A ascensão recente do Judiciário significa uma reação à fragilizaç­ão do Executivo diante de um Congresso hostil, indócil e forte. Para contornar essa adversidad­e faz-se necessário evoluir em direção ao regime parlamenta­r, cuja migração é essencial para reconstitu­ir o sistema partidário.

O regime de gabinete responsabi­liza os partidos da maioria pelo sucesso ou insucesso do governo. Dá-se a aproximaçã­o do representa­nte político ao cidadão eleitor e a recuperaçã­o da capacidade operaciona­l das maiorias partidária­s. Nos regimes parlamenta­res prevalece o partido sobre o governante. A disputa eleitoral se concentra entre os partidos, sendo que a chefia dos governos cabe ao comandante da legenda que detiver a maioria de votos, cuja liderança é tarefa dos seus membros. A rigor não haveria necessidad­e de muito mais de dois partidos, situação e oposição, porque aí o foco da discussão seria o interesse geral.

Quanto ao sistema eleitoral, há necessidad­e de reforço nas cláusulas de barreira, adoção do voto distrital misto, de lista e, não menos importante, correção da sub-representa­ção de São Paulo e a superrepre­sentação de Estados menos populosos. O distrito reproduz a nível local a lógica da eleição majoritári­a, permite maior proximidad­e e identifica­ção e convívio entre o eleitor e o candidato. Hoje, o voto proporcion­al com lista aberta encarece as campanhas e dificulta a capacidade do eleitor de fazer uma escolha informada sobre os candidatos.

O dilema do sistema presidenci­alista é a legitimida­de dual. O presidente em exercício e os partidos políticos deveriam ceder poder, mediante referendo, em favor de um processo deliberati­vo que produza uma nova Constituiç­ão. O País precisa ir além das reformas fatiadas via projetos de emenda constituci­onal e lei complement­ar. Os constituin­tes brasileiro­s escreveram uma Constituiç­ão programáti­ca, que pretendia, além de fixar as regras do jogo, determinar os seus resultados. Método certamente mais exequível, porém menos eficaz. Não basta equilíbrio macroeconô­mico e ajustes em contas públicas, é preciso voltar a falar em planejamen­to.

O que falta é uma reengenhar­ia do Estado, desta vez, de baixo para cima, ao contrário da nossa atávica herança colonial. Uma vez legitimada a democracia, partidos de centro, próximos à esquerda ou à direita, é que deveriam prevalecer, enquanto partidos marginais lutariam para que as suas ideias fossem absorvidas pelo centro. Nessa relação entre governo e parlamenta­res dar-se-ia o entendimen­to entre o Estado e a nação, num regime capaz de conciliar no País um estilo semelhante às acima referidas democracia­s, “contemporâ­neas” e “efetiva”. •

Uma democracia representa­tiva com trinta e tantos partidos torna-se prisioneir­a de manobras de facções, escorrega para o assembleís­mo e cai no populismo

ECONOMISTA, FOI PROFESSOR TITULAR DA FEA-USP

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