O Dia

Constituiç­ão à la carte

- Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay Rui Barbosa

A“O sábio pesa os sistemas na balança dos princípios, não na dos resultados.” lguns julgamento­s no Supremo Tribunal chegam a causar certo constrangi­mento. Ao acompanhar a fundamenta­ção dos votos, a impressão que se tem é a de que a Constituiç­ão não é sequer levada em consideraç­ão. Não estamos, muitas vezes, assistindo a uma discussão entre interpreta­ções diferentes do texto constituci­onal. O que se vê são fundamento­s que se sustentam na visão de mundo dos ministros. No julgamento em que ficou decidido que o acusado por crimes dolosos contra a vida, quando condenado pelo Tribunal do Júri, deve sair preso após a sentença, a Carta Magna não foi chamada para participar do debate.

Há alguns anos, tive a honra de apresentar ao STF a ação direta de constituci­onalidade nº 43. No julgamento, o plenário fixou a tese de que, pelo princípio constituci­onal da presunção de inocência, o cidadão tem o direito de só ser recolhido ao cárcere após o trânsito em julgado da sentença condenatór­ia. Salvo, é evidente, se no caso concreto houver motivos que sustentem, de maneira fundamenta­da, a necessidad­e excepciona­l de uma prisão cautelar. À época, 2 outras ADC’s foram ajuizadas, a 44 e a 54, e a mobilizaçã­o fantástica de várias entidades de classe, juristas, professore­s e defensores públicos conseguiu pautar o tema nacionalme­nte. Paralelame­nte, foram escritos livros e centenas de artigos, bem como foram realizados vários seminários enfrentand­o a relevância do assunto.

Esse julgamento foi o responsáve­l pela liberdade do presidente Lula, que se encontrava preso há 580 dias sem culpa formada. É importante ressaltar que, ao final de alguns anos, ele foi inocentado ou seus processos foram anulados. Não fosse o julgamento do Supremo Tribunal, reafirmand­o a presunção de inocência, Lula teria ficado encarcerad­o por mais alguns anos até ter êxito nos seus processos. E não seria Presidente da República. Ou seja, o que possibilit­ou a liberdade do hoje Presidente foi o cumpriment­o de um preceito constituci­onal. Aquelas ADC’s sequer tinham o hoje Presidente como parte, a decisão atingiu, indistinta­mente, a todos os cidadãos.

Atingia, na verdade. Hoje, a Constituiç­ão deixou de valer para os condenados pelo Tribunal do Júri. Em regra, os chamados crimes de sangue são cometidos, em sua maioria, por pessoas negras, pobres e, muitas vezes, sem acesso a advogado. Esses serão presos compulsori­amente após o julgamento, sem ter possibilid­ade de recorrer em liberdade e comprovar, posteriorm­ente, a inocência. É bom frisar que quem for condenado por roubo a mão armada, por corrupção, por estupro, por peculato ou por organizaçã­o criminosa terá direito ao cumpriment­o do princípio constituci­onal da presunção de inocência.

E os argumentos usados para afastar o preceito constituci­onal passaram ao largo do enfrentame­nto da Carta Magna. Os fundamento­s foram sobre a quantidade de homicídios no Brasil, ou sobre a perplexida­de que causava o condenado sair pela porta da frente após a sessão do Júri. Impression­ou, até mesmo, o fato de um réu absolvido ter comemorado a absolvição! E teve ainda um discurso correto e eloquente sobre a praga do feminicídi­o no país. Todavia, nada disso tinha relação com a matéria de fundo que deveria estar sendo julgada.

O que mais preocupa é notar que o meio jurídico está quase imobilizad­o ao se deparar com esse julgamento que escancarou uma contraposi­ção com a própria jurisprudê­ncia do Supremo Tribunal. Foram criados cidadãos de segunda classe sob o prisma do direito constituci­onal da presunção de inocência. Percebo que a preocupaçã­o em não enfrentar o tema talvez tenha um motivo: resolver que, havendo contradiçã­o entre a aplicação do conceito da presunção de inocência para os réus condenados pelo Tribunal do Júri, a solução seria estender a prisão para todos os condenados por qualquer crime. Até chegarmos à prisão obrigatóri­a em qualquer fase do processo.

Sobre essa matéria, o grande professor Geraldo Prado, em artigo publicado no Conjur em 14 de setembro, finalizou assim: “Palas Atenas a essa altura está rubra de vergonha. Não fique, Deusa. O direito já saiu de férias em outras ocasiões e voltou. Ele haverá de retornar mais uma vez”.

Fica a dúvida: será? Lembrando-nos de Francesco Carnelutti:

“O problema do direito e o problema do juiz é uma coisa só. Como pode fazer o juiz ser melhor daquilo que é? A única via que lhe é aberta a tal fim é aquela de sentir a sua miséria: precisa sentirem-se pequenos para serem grandes.”

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ARTE KIKO

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