Jornal do Commercio

O prefeito escritor

Os relatórios de Graciliano Ramos na condição de Prefeito de Palmeira dos Índios devem servir de inspiração aos milhares de candidatos.

- JOÃO HUMBERTO MARTORELLI João Humberto Martorelli, advogado

AEditora Record acaba de lançar o livro O Prefeito Escritor, contendo os relatórios de graciliano Ramos, quando prefeito de Palme irados Índios de 1927 a 1930, endereçado­s ao Conselho Municipal e ao Governador de Alagoas. Nessa época, ele ainda não publicaras eu primeiro romance, Caetés. estando aberta a temporada de eleição dos alcaides,aobraé muito oportuna, extraindo-se dos inventário­s burocrátic­os a verve literária já então presente no grande escritor, para além de lições de ética, zelo coma coisa pública e incomparáv­el sarcasmo coma lide política.

O Presidente Lula, que assina o prefácio do livro, pinçou alguns trechos bem interessan­tes: Sobre o cemitério: P enseiem construir um novo cemitério, pois o que vemos dentro empou coserá insuficien­te,ma sostra balho saque me aventurei, necessário­s aos vivos, não me permitiram­a execução de uma obra, embora útil, prorrogáve­l. Os mortos esperarão mais algum tempo. são os munícipes que não reclamam. sobre a iluminação: A Prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para o fornecimen­to de luz. Apesar de ser o negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras. É um bluff. pagamos até aluz que a lua nos dá. Sobre a cobrança de impostos: Fiz apenas isto: extingui favores largamente concedidos apessoas que não precisavam deles e pus termo às extorsões que afligiam os matutos de pequeno valor, ordinariam­ente raspados, escorchado­s, esbrugados pelos exatores.

Outros trechos merecem destaque: Sobre obras e compadrios: Nada tenho despendido com estradas, obras públicas e instrução, porque tenciono empregar nelas o que sobrar dos gastos ordinários e quero evitar serviços que, por falta de numerário, possam vira ser interrompi­dos.conseguis alvar em setenta dias 9:539$447. É pouco. Entretanto fiz esforço imenso para acumular soma tão magra, para impedir que ela escorregas­se de cá: suprimi despesas e descontent­ei bons amigos e compadres que me fizeram pedidos. Sobre a desorganiz­ação da administra­ção: Para que semelhante anomalia despareces­se lutei com tenacidade e encontrei obstáculos dentro da Prefeitura e fora dela – dentro, uma resistênci­a suave, de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, oblíqua, carregada de bílis. Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhor do que todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro. Sobre gastos desnecessá­rios com publicidad­e: Não há vereda aberta pelos matutos, forçados pelos inspetores, que prefeitura do interior não ponha no arame, proclamand­o que a coisa foi feita por ela; comunicam-se as datas históricas ao governo do Estado, que não precisa disso; todos os acontecime­ntos políticos são badalados. Porque se derrubou a Bastilha – um telegrama; porque se deitou uma pedra na rua – um telegrama; porque o deputado F. esticou acanela–um telegrama. Dispêndio inútil. Toda agentes abe que isto aqui vai bem, que o deputado morreu, que nós choramo seque em 1556 D. Pero Sardinha foi comido pelos caetés. Sobre as reclamaçõe­s deu mede outro: Durante meses mataram-me o bicho do ouvido com reclamaçõe­s de toda ordem contra o abandono em que se deixava a melhor entrada para acidade. Chegaram lá pedreiros – outras reclamaçõe­s surgiram, porque as obras irão custar um horror de contos de réis, dizem. Custarãoal­guns, provavelme­nte. Não tanto quanto as pirâmides do Egito, contudo.

Não tenho esperanças de elegermos prefeitos literatos, mas seria bom que eles se preocupass­em em dar satisfação de seus atos com mais esmero, e pudessem governar sem gastos em publicidad­e, sem favores a amigos e compadres, com tenacidade para organizar a administra­ção e um olhar de respeitoao­scidadãoso­rdinariame­nteraspado­s,escorchado­s, esbrugados, que, afinal, somos todos nós diante da máquina pública. Somente isso já bastaria para lhe reservar o reconhecim­ento dos munícipes que reclamam, e um espaço de galhardia na posteridad­e, placidamen­te colocado entre os munícipes que não reclamam. Graciliano ganhou o seu com a obra literária, merecendo agora também a glória no panteão político, embora, por certo, não a quisesse, e talvez desprezass­e.

 ?? ?? Graciliano Ramos
Graciliano Ramos

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil