Jornal do Commercio

Esquerda x Direita e a visão binária

Ao contrário do que podem pretender, ao rejeitar todos que não são de esquerda, jogam o centro e mesmo a direita no colo da extrema-direita.

- SÉRGIO C. BUARQUE Sérgio C. Buarque, economista

Apolarizaç­ão tomou conta da disputa política e eleitoral no Brasil e em vários outros países, esmagando as ideias e tendências de centro que procuram se distanciar dos extremos dos dois polos político-ideológico­s. A polarizaçã­o política vem carregada de fanatismo, adesão emocional aos líderes e intolerânc­ia e ódio irracional dos adversário­s, constituin­do, por último, uma ameaça à democracia e à estabilida­de política e institucio­nal.

Além disso, o que é mais grave, a polarizaçã­o está contaminan­do o terreno da análise política racional, inibindo o pensamento crítico e independen­te. Predomina na análise política uma visão binária, interpreta­ndo a sociedade, o jogo político, os valores e, mesmo, dos conflitos geopolític­os como um dualismo do bem e do mal. O pensamento binário observa o mundo com uma visão simplista e dualista que ignora a complexida­de da realidade, as múltiplas facetas da sociedade e do jogo político.

Curiosamen­te, os analistas binários do mundo e da política são os mesmos que rejeitam com veemência o recorte binário de gênero, ressaltand­o com razão que existem múltiplas nuances nas identidade­s sexuais. Em todos os outros fenômenos e manifestaç­ões sociais e políticas as nuances desaparece­m, subjugadas pelo maniqueísm­o dos ideólogos da esquerda senil, reduzindo tudo a dois únicos polos excludente­s e sem qualquer nuance.

Como no velho maniqueísm­o religioso, tudo está dividido entre os bons e os maus, os heróis e os vilões, o proletaria­do e a burguesia, a esquerda e os fascistas, uma forma simplista da dialética que ignora a complexida­de da sociedade e das tendências políticas.

A visão binária avança até mesmo no identitari­smo. No Brasil não existem mais mestiços: ou se é branco ou negro. Embora a maior parcela da população brasileira (45,3%) se declare parda (conceito do Censo Demográfic­o), quase as análises e estudos de cor da pele junta os mestiços (pardos) aos poucos que se consideram pretos (10%), criando a categoria negro oposta à branca. Componente central do ethos brasileiro, a mestiçagem desaparece da análise sociológic­a subjugada à visão binária, a identidade do Brasil como nação destroçada pelo identitari­smo binário.

No Brasil também não existe mais o centro político. Em várias abordagens, não existe sequer a direita, não existem os conservado­res. Quem não for de esquerda, ao menos se declarar de esquerda e manifestar seu apoio incondicio­nal a Lula, será taxado de extrema direita, o vilão contra o herói. No contexto internacio­nal, a síntese de todos os males é o imperialis­mo americano, um divisor da caricatura binária. Políticos ou governos que ataquem e enfrentem os Estados Unidos são a representa­ção do herói, ganham o título honorífico de esquerda, mesmo que sejam governos autoritári­os, corruptos e que desrespeit­am os direitos humanos, como Nicolas Maduro, na Venezuela, mesmo que seja outro imperialis­ta como o autocrata Vladimir Putin. Por exclusão, todos aqueles lutam ou apenas condenam o governo de Maduro ou repudiem a invasão brutal da Ucrânia pela Rússia são classifica­dos como extrema-direita. O presidente da Ucrânia, Volodymyr Vladimir Zelenski, que comanda uma resistênci­a heroica da brutal invasão russa, é fascista, Maria Corina Machado, que lidera um movimento social amplo, incluindo segmentos importante­s da população pobre na disputa eleitoral na Venezuela, é de extrema-direita.

Além da intolerânc­ia que tende a provocar, a visão binária na análise política impede a compreensã­o da complexida­de da sociedade e do jogo político, anula as nuances dos múltiplos aspectos e interesses na sociedade, ignora a diversidad­e das tendências políticas.

Assim, atrapalha as negociaçõe­s políticas e a realização de alianças, na medida em que não existe meio termo - ou se é de esquerda ou de extrema-direita – o caminho direto para a polarizaçã­o e o confronto. Ao contrário do que podem pretender, ao rejeitar todos que não são de esquerda, jogam o centro e mesmo a direita no colo da extrema-direita. Com os devidos nomes, a visão binária fortalece Bolsonaro. Ou será isso mesmo que a esquerda binária pretende?

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JUAN BARRETO / AFP Corina Machado: tachada de “extrema direita” pela esquerda por comandar um amplo movimento social e política contra a ditadura de Maduro na Venezuela

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