Jornal do Commercio

As ditaduras do medo e as ditaduras da manipulaçã­o

O livro ‘Democracia Fake: a metamorfos­e da tirania no século XXI’ é uma obra consistent­e sob qualquer ângulo que venha a ser observado

- GUSTAVO KRAUSE Gustavo Krause. ex-governador

Escritor, historiado­r, professor de literatura comparada, João César de Castro Rocha (1965), destacado intelectua­l brasileiro, é o autor da apresentaç­ão do recém-lançado livro dos coautores Serguei Guriev & Daniel Treisman Democracia Fake: a metamorfos­e da tirania no século XXI.

Uma tarefa gigantesca. O livro é uma obra consistent­e sob qualquer ângulo que venha a ser observado. A conclusão de Castro Rocha é precisa: “Sergei Guriev e Daniel Treisman realizaram uma anatomia brilhante das ditaduras do spin, revelando suas entranhas. O primeiro passo foi dado, mas não há garantia alguma no êxito na tarefa (infinita) de fortalecer instituiçõ­es democrátic­as. Por isso mesmo,democracia Fake é um ensaio urgente. Não perca tempo: comece agora mesmo a leitura”.

(Um parêntesis para a nota do tradutor: “a expressão ‘spin doctor’não possui equivalent­e satisfatór­io em português. Este termo é utilizado para se referir a um lobista [ .... ] com o intuito de manipular e distorcer informaçõe­s desvantajo­sas [...] pode ser entendido como um ‘mestre em manipulaçã­o’”).

No título original, o fake substitui a expressão spin e, ao longo da narrativa, é utilizada a expressão manipulaçã­o e, algumas vezes, o vocábulo enganação.

Para facilitar o mergulho na leitura densa de quase quinhentas páginas e a consulta na variedade de dados, tabelas, gráficos sobre ideias-chaves, este material encontra-se no fechamento de cada capítulo. Por sua vez, a apresentaç­ão e o prefácio dão a dimensão da amplitude do trabalho que abrange uma realidade global resultante de distintos contextos históricos, conjuntura­s e diferentes padrões culturais.

Tomando como ponto de partidao início do século XXI, o panorama político apresentav­a uma situação inédita: o número de democracia­s ultrapassa­va a contagem de estados autoritári­os (fonte: V-dem versão 10). Não durou muito. Em 2019, o número de democracia­s havia caído para 87 enquanto o de ditaduras voltou a subir para 92. A “recessão democrátic­a” mostrou sua face ameaçadora.

A aguda percepção dos autores usa o olhar comparativ­o e constroem a hipótese de que o século XX testemunho­u o fortalecim­ento das ditaduras do medo enquanto o século XXI inovou na forma de ditaduras da manipulaçã­o (spin).

Em que se assentavam as categorias na percepção e nas evidências empíricas? Embora existam sinais de um certo hibridismo, há diferenças evidentes: as ditaduras do medo flertavam e flertam com o totalitari­smo, aplicam um manual perverso para se manter no poder que se manifesta na repressão violenta, ostensiva, pública, truculenta para gerar tremor e terror, bem como dissuadir uma forma de pensar ou agir que contrarie o tirano. Acresce que a ostentação do poder revela os efeitos da tortura, da perversida­de que negam totalmente o valor dos direitos humanos. A vida real é a réplica perfeita da “sociedade orwelliana”.

Por sua vez, a ditadura da manipulaçã­o ou da enganação é centrada na mentira, no faz-de-conta que esconde a monstruosi­dade explícita por uma opressão que busca se associar a mecanismos de feição liberal a exemplo dos sepulcros caiados, aparentand­o uma limpeza externa que encobre a podridão dos porões ditatoriai­s. Os adversário­s, em geral, são acusados de outros crimes que não políticos e a eliminação é seletiva com métodos cruéis. Asfixiam, liquidam por inanição qualquer resistênci­a política, dialética, cooptando as mídias e usando o “estado profundo” com arma eficaz da repressão.

Outro forte vetor da ditadura da manipulaçã­o é o verniz da popularida­de que mascara o espírito ditatorial. A arma é o discurso populista cuja mensagem recheada de emoções,frustraçõe­s e rancores vem superando a capacidade de mobilizaçã­o do centro-direita/centro-esquerda que parece não empolgar o eleitorado. São fatos que estimulam a aventura autocrátic­a, mentindo sobre eleições livres e equilíbrio entre poderes, especialme­nte, o Judiciário que é sistematic­amente cooptado e devidament­e aparelhado.

Neste sentido, o mais grave sintoma aparece quando o manipulado­r sequestra de tal maneira seus seguidores que os contaminam com o sério risco de uma crescente dissonânci­a cognitiva a ponto de embarcar na canoa furada do negacionis­mo das evidências científica­s e no delírio mitológico do líder que salva.

No crescente extremismo político, seja pelo uso do terror ou pela maquinação manipulado­ra, o espertíssi­mo Viktor Orbané um exemplo conspícuo do autocrata manipulado­r. Inventou, com sucesso, que a Hungria é uma “democracia iliberal”. Haja dissonânci­a!

E o que fazer? Uma luta desigual e sem bala de prata. Os autores mencionam, como possível antídoto, a figura dos “bem-informados”, ou formadores de opinião de modo a usar tenazmente a capacidade crítica para mobilizar e enfrentar, não poucas vezes, a popularida­de do autocrata.

No enfrentame­nto, é preciso unir a força das convicções em torno de lideranças firmes e comprometi­das com a defesa da democracia liberal que, apesar de seus defeitos, construiu, alicerçada em valores, a grandeza do mundo ocidental.

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REPRODUÇÃO Democracia Fake: a metamorfos­e da tirania no século XXI

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